A Câmara dos Deputados deve retomar nesta semana a votação do projeto de lei conhecido como Lei Antifacção, proposta que endurece o combate a organizações criminosas com atuação territorial, econômica e política. O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), garantiu que a medida não vai retirar prerrogativas da Polícia Federal, ponto que havia gerado atrito entre o relator, Guilherme Derrite (PP-SP), e o Ministério da Justiça. O projeto prevê penas mais severas para líderes e financiadores de facções, bloqueio de bens e integração entre forças policiais.
A discussão ocorre num momento em que o país convive com episódios que evidenciam o avanço do crime organizado, tema que a BBC News Brasil abordou em reportagem especial, assinada por Camila Veras Mota. Segundo o site da emissora britânica, o ano de 2025 foi marcado por casos emblemáticos que reforçam a percepção de que as facções se tornaram mais poderosas e influentes. Entre eles, o assassinato de um ex-delegado em São Paulo, a morte de um delator do PCC no aeroporto de Guarulhos e a expansão de negócios da facção paulista em empresas de tecnologia na Faria Lima.
A BBC consultou sete especialistas em segurança pública e sociologia que rejeitam a ideia de que o Brasil possa ser classificado como um “narcoestado”. Para os pesquisadores, o termo é exagerado e não descreve com precisão o fenômeno observado no país. O sociólogo americano Benjamin Lessing, da Universidade de Chicago, disse que o conceito só se aplicaria se o próprio Estado passasse a operar a indústria das drogas, o que não ocorre no Brasil.
Ainda assim, o avanço das facções é inegável. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o faturamento total das organizações criminosas chega a R$ 348 bilhões por ano, sendo apenas R$ 15 bilhões provenientes do tráfico de cocaína. As principais fontes de renda hoje são os crimes virtuais, os furtos de celulares e a infiltração em mercados legais, como transporte e coleta de lixo. O mesmo levantamento aponta que 31 milhões de brasileiros — 19% da população — vivem em áreas dominadas por grupos criminosos, número superior ao de países historicamente violentos como México e Colômbia.
Na avaliação do sociólogo Gabriel Feltran, da Sciences Po, o Brasil vive uma situação de “regimes de poder coexistentes”, em que o Estado divide o monopólio da violência com as facções. Já o pesquisador Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, fala em um “narcoestado difuso”, caracterizado pela infiltração do crime em governos locais, contratos públicos e campanhas eleitorais, sem controle direto das instituições federais.
Os dois pesquisadores alertam que o problema se expandiu para além do tráfico e se tornou uma rede complexa que conecta garimpo ilegal, desmatamento, corrupção municipal e lavagem de dinheiro. Esse fenômeno, chamado de “governança criminal”, explica por que o poder das facções continua crescendo apesar das operações policiais.
A proposta da Lei Antifacção, defendida pelo governo como instrumento essencial para enfrentar esse avanço, tenta responder a esse diagnóstico. O desafio agora é político: aprovar um texto que fortaleça o Estado sem criar brechas que limitem a atuação da Polícia Federal — e, ao mesmo tempo, mostrar à sociedade que o país ainda está longe de se tornar um “narcoestado”.
(Fonte: BBC News Brasil)