terça-feira, 1 de abril de 2025
Torres contra o autoritarismo
01/03/2025
  • Por Lier Pires Ferreira e Renata Medeiros

No próximo dia 02 de março, muitos brasileiros irão acompanhar a 97ª cerimônia de entrega do
Oscar. Vidrados na TV ou nas redes sociais, eles torcerão para que “Ainda estou aqui” possa
ser um dos vencedores da noite e que Fernanda Torres conquiste o prêmio de melhor atriz.
Não será uma tarefa fácil. A rebento de Fernanda Montenegro e Fernando Torres, dois gigantes
dos palco brasileiros, concorrerá com pesos pesados da indústria cinematográfica mundial,
como Demi Moore (A Substância) e Karla Gascón (Emilia Pérez). Primeira brasileira a vencer o
Globo de Ouro, ela sabe que está em uma disputa assimétrica, onde a balança pende para as
adversárias, em particular para Demi Moore, um ícone de Hollywood.
O Oscar não é um fim em si mesmo. Um filme brasileiro, com orçamento limitado e falado em
português obter o sucesso de “Ainda estou aqui” já é um grande feito. Concorrer ao Oscar nas
categorias “melhor filme” e “melhor filme estrangeiro” é um plus considerável. Mas a cereja do
bolo é a indicação de Fernandinha na categoria “melhor atriz”. Afinal, ela não teve uma carreira
internacional, sendo desconhecida do público e da crítica no exterior. Mesmo assim, está no
páreo e pode surpreender.
A visibilidade angariada com “Ainda estou aqui” tem feito Fernanda Torres brilhar em outras
searas. Sem que tenha uma arte manifestamente militante, a atriz tem feito dos holofotes uma
plataforma na luta contra o obscurantismo político, contra o autoritarismo fascista que avança
no Brasil e no mundo. Enquanto Trump abate a socos e pontapés a frágil governança global
construída desde o fim da II Guerra Mundial (1939-1945), na Europa partidos nazifascistas
ampliam seus espaços de poder. É o caso da “Alternativa para a Alemanha”, de Alice Weidel,
que conquistou mais de 20% das cadeiras no Parlamento Alemão, a maior vitória da
extrema-direita desde a ascensão de Hitler, nos anos 1930.
Essa face engajada da atriz tem incomodado muitas pessoas, radicalizadas pela polarização
política. Ainda que de boa-fé, esses brasileiros frequentemente estão mais próximos do
autoritarismo fascista do que suas ralas consciências lhes permite perceber. Saudosos da “paz”
e da “segurança” impostas por fuzis e baionetas, eles promoveram campanhas de boicote ao
filme de Walter Salles nos cinemas brasileiros e, descrentes do passado, torcem contra o êxito
de sua protagonista.

Rejeitando as vastas provas documentais e testemunhais sobre os horrores perpetrados pela
ditadura militar, esses brasileiros não se permitem ver que “Ainda estou aqui” não é um embate
entre direita e esquerda, entre Lula e Bolsonaro. Antes de tudo, ela representa um Brasil leve,
progressista, de céu e mar, idealizado por ícones como Juscelino, Oscar Niemeyer e Darcy
Ribeiro. Um Brasil brasileiro, poético, de Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes,
um Brasil solidário, de Irmã Dulce e Dom Eugênio Salles, um Brasil musical, da Bossa Nova à
Tropicália, de Tom Jobim à Caetano Veloso, passando por Chico, Cartola e Candeia. Onde vai
dar tanta cegueira?
Em uma entrevista ao jornalista Mario Sergio Conti, Fernandinha disse que os brasileiros estão
“vivendo de novo um namoro com a ideia de que o autoritarismo talvez resolva os nossos
problemas. Não só aqui, como no mundo, porque eu acho que a modernidade não nos trouxe
calma, ela nos trouxe caos.” É uma bela reflexão. Por isso, mais do que uma grande atriz, na
linha direta de Marília Pêra, Laura Cardoso e, claro, Fernanda Montenegro, Fernandinha tem
sido um farol de lucidez em um país culturalmente rebaixado, ávido por sucesso imediato,
indiferente às dores alheias e cego pela fratura política que transforma adversários em
inimigos. Sua voz, firme como a de Eunice Paiva, faz da arte “um sério antídoto contra as
certezas”. Sua imagem, elevada, representa uma torre alta contra o obscurantismo político,
contra o autoritarismo latente na alma de muitos brasileiros.

* Lier Pires Ferreira — Doutor em direito pela Universidade Federal Fluminense, advogado; * Renata Medeiros — Mestre em ciência política, advogada
Compartilhe:
sobre
Gira Mundo
Gira Mundo

Lier Pires Ferreira — PhD em Direito (UERJ). Pesquisador do NuBRICS/UFF;
Renata Medeiros — Mestre em ciência política, advogada.