No poder, todo governo tem que ser ideológico, para ser medido, mas nunca partidário, para não querer ser definitivo.
D’O Livro das Indiferenças
O Relatório de Witold é o documento escrito por Witold Pilecki, um oficial polonês que fez uma das façanhas mais inacreditáveis — e trágicas — do século XX. O homem se deixou prender de propósito pelos nazistas para ser enviado a Auschwitz. Sim: ele se infiltrou voluntariamente no campo de extermínio.
De lá, entre o fedor das câmaras e o riso nervoso dos “kapos”, escreveu um aviso ao mundo — um relatório moral que não pretendia salvar o passado, mas impedir que o futuro voltasse a dormir.
Relatórios assim não pertencem apenas ao passado: são bússolas deixadas para tempos em que a democracia se distrai.
Há momentos em que a vida institucional de um país não rui: apenas enverga. Nada explode, nada quebra, nada anuncia a tempestade. Mas pequenos atos de exceção, repetidos muitas vezes, passam a ocupar o lugar das regras. É assim que as democracias adoecem: por infiltração, não por golpe.
Chamo este texto de Relatório Tagliaferro apenas para iluminar mecanismos.
O caso envolve um cidadão que questiona um abuso e termina processado no próprio ambiente que criticou.
O relevante não é o nome — é a arquitetura institucional que permite a inversão entre quem vigia e quem é vigiado, e a degenerescência de toda a estrutura processual. Em direito o processo é formal, pode até parecer obstáculo, porém é litúrgico; não se perfaz como quem distribui milhos a pintos, e, sim, por canais próprios.
Recentemente, uma emissora de rádio que fazia oposição ao presidente do Senado teve sua concessão cassada. Não discuto o mérito jurídico; discuto o sinal institucional.
O Senado é o órgão de controle político do Supremo Tribunal Federal: aprova e impede ministros, susta atos, vigia o equilíbrio dos Poderes.
O Supremo, por sua vez, deveria julgar senadores — processos que raramente avançam.
O deputado Janones fez acordo com a acusação, por um crime confesso; o deputado Eduardo Bolsonaro foi julgado sem citação, por um ato sem tipificação penal.
Tagliaferro está sendo processado porque revelou atos graves, que deveriam ser apurados, mas o mais curioso é que ele não tem prerrogativa para o foro no STF. O ato sugere uma pedagogia para intimidar outros, por motivos, supostamente, muito mais graves.
Ninguém sabe das câmeras de 8 de janeiro e nem a função do ministro G. Dias, na ocasião.
Para completar, o STF já tem processos que sequer são publicados (segundo resolução da Corte herdada da “Civilização do Barroso”) e, portanto, são inacessíveis – até para vítimas e advogados.
Até a OAB, que ganhou da história um estranho status constitucional, resolveu admitir-se à cumplicidade omissiva, quando deveria, pelo menos, defender seus associados compulsórios.
Tudo é silêncio!
Há um estado de anarquia oficial tão descarado que a corrupção e a insegurança criam na nação conceitos relativos de soberania e de ética pública que negam até às armas o poder de controle. O Exército e as Polícias não são mais esteios para garantir que o povo tenha a quem recorrer, quando lhe falta a paz. Cerca de 40% da população vive sob o controle do narcotráfico, que criou um estado paralelo, com suas leis e culturas próprias.
É de lamentar, às lágrimas, trazer da memória a história dos “Pracinhas” da FEB, na tomada de Monte Castelo, Montese e Fornovo, sob condições as mais difíceis, na luta contra o NaziFascismo, ou mesmo daquele policial que guarda o bairro, a rua ou a rua da escola dos filhos.
Quando o Poder que deve controlar depende do Poder que deveria ser controlado, instala-se a assimetria que fragiliza a República. A falta de freios e contrapesos não é detalhe técnico: é o limite que separa Democracia de Administração do Medo.
E aqui entra uma lição que o século XX escreveu com ferro e sangue.
O nazismo, em sua engenharia sombria, criou a doutrina da responsabilidade coletiva: se um errava, todos pagavam; se um resistia, a comunidade inteira era punida; se um judeu era acusado, o gueto inteiro sofria. A culpa deixava de ser fato e passava a ser pertencimento. Era o Estado dizendo:
“Não me interessa o indivíduo; interessa-me o grupo ao qual decidi, pelos meus adjetivos, que você pertence.”
A responsabilidade coletiva é sempre apresentada como zelo — mas é a porta mais discreta para a exceção permanente.
O nazismo — como o fascismo — é o governo do governo, pelo governo e para o governo. É quando o Estado deixa de servir ao povo e passa a escolher o povo que quer servir, filtrando cidadãos por afinidade, identidade ou conveniência. É o regime que controla a linguagem, a polícia, a academia, as artes e a comunicação; que transforma a opinião pública em instrumento e a crítica em delito; que abandona a substância e se apaixona pela imagem, porque a imagem é mais fácil de moldar do que a verdade; e essas imagens são “altarizadas”, para tornarem-se intocáveis e incontestáveis.
Nesse ambiente, nasce o método mais tóxico que um Estado pode adotar: a responsabilidade coletiva. Ela se apresenta como moral, mas é atalho. Funciona assim: basta qualificar para acusar, acusar para julgar, e julgar para condenar.
Não há fato, há rótulo.
Não há culpa individual, há categoria suspeita.
Não há investigação, há narrativa.
Quando o adjetivo julga, o Estado já deixou de ser República.
Por isso, os processos de impedimento — de quem quer que seja — não podem jamais prescindir da reserva do plenário, nem no ato mais banal, nem no mais absurdo.
A reserva do plenário é o coração da legitimidade. Sem ela, o processo deixa de pertencer à República e passa a pertencer a vontades pessoais. E vontade pessoal não existe na República, que é a acessibilidade e a disponibilidade do poder. Nada se esconde. Não se privatizam funções institucionais de controle. Nada se decide nas sombras. A República abomina segredos e privilégios. Onde há segredo, há suspeita. Onde há privilégio, há ruptura da igualdade.
A reserva do plenário não é detalhe jurídico: é o antídoto contra a tentação de transformar funções em feudos, poderes em trincheiras e cargos em reinos particulares.
E, para terminar, deixo uma imagem que ensina pela contradição. Kaká, Ronaldo, Ronaldinho e Adriano, quando se juntavam antes de cada partida e entravam em campo antes do começo do jogo, não precisavam levantar a voz para impor respeito: bastava estarem ali. Aquilo era intimidação esportiva — legítima, lúdica, quase poética.
Na República, porém, a lógica é outra. O poder não existe para intimidar: existe para ser limitado. É da pedagogia republicana que os nomes sejam exemplares pelo respeito que despertam, não pelo medo que pretendam impor.
E aqui mora a distinção clássica, que atravessa até as teologias: o temor é princípio; o medo é terror. O temor nasce da reverência à lei; o medo nasce da vontade de quem a aplica. O temor edifica; o medo corrompe.
O Brasil não carece de força — carece de exemplos institucionais. Exemplos que devolvam ao poder o pudor do limite, a modéstia da regra, o respeito às formas. Exemplos que recordem ao país que ninguém deve tremer diante do Estado — apenas respeitá-lo.
É nesse espírito que este Relatório Tagliaferro se encerra: não apenas como denúncia, mas como advertência; não apenas como acusação, mas como memória; não como grito, mas como vela acesa. Uma espécie de Witold supremo atual e tropical.
É chegada a hora da responsabilidade de todos, por qualquer meio. A omissão será prova de cumplicidade. Porque a democracia não se defende pelo medo que provoca, mas pelo respeito que inspira.
Por ter passado quase 30 anos advogando perante o STF, é possível dizer: Nunca foi assim!
Portanto, é prudente avisar:
NUNCA MAIS é AGORA!
Clara*
Sem fazer sombra no chão,
vestindo-se de claridade,
descobriu-se luminosa
— um anjo de Deus em nós.
Deu-se à vida,
iluminando a luz,
encantada no canto que cantou.
Clara,
como um rio das montanhas para o mar,
admirando seus passos na areia.
Era o mar de Yemanjá,
os ventos de Iansã,
e a prata das águas de Oxum
clareando as cabeças com Nanã.
Clara,
reclamada em sonhos angelicais,
voltou ao céu, a Deus,
em despedida
— a oração que ofertamos à liberdade.
Voltou à claridade.
Volta, claridade.
*Lembrar Clara Nunes é um modo de acender a luz.
