Quando o arreio solta, o cavalo corre sem se importar com as razões do cavaleiro
Nas crises com o STF, sempre aparece alguém para propor eleição direta ou a ridícula e fascista escolha corporativa dos juízes. Insistem no erro os que não compreendem a dimensão do episódio. O Judiciário é poder por duas razões: porque a Constituição, originariamente, disse assim e, por derivação, porque os poderes políticos escolhem seus membros.
Todo poder emana do povo. Portanto, é possível afirmar que não há poder sem base popular. A rigor, como dizia o professor Romero Rangel, o único poder é o do povo (que ele chamava de poder constituinte originário). Para mim, em complemento ao meu professor e a Abraham Lincoln, o governo — o Estado — é apenas um serviço: o serviço público do povo. A propósito, esses serviços, hoje ainda separados pela ordem legal, são bem mais elásticos, não se resumindo aos serviços Legislativo, Executivo e Judiciário. Há serviços, como o Voluntariado e o Comunitarismo, que precisam ser observados pela política.
Pois bem! Como o Judiciário (e eu peço sempre que não o confundam com Justiça: exclusividade do Deus que há em cada um) não tem base popular direta, necessita dessa legitimidade. Por isso, sua composição passa pela escolha do presidente eleito e pela aprovação do Senado. Se os demais poderes são referendados pela via direta, o Judiciário é escolhido através de representantes eleitos. A jurisdição política do STF existe para garantir que a base técnica do Judiciário receba controle político no ápice, porque sua legitimação é invertida — de cima para baixo — diferente dos demais poderes.
No sistema de freios e contrapesos, o STF é julgado pelo Senado, por provocação popular. Nada mais democrático. Mas, quando o Senado é composto por pessoas que têm, no dizer popular, “o rabo preso”, o STF fica à vontade para fazer o que quer, pois termina chantageando o seu julgador, que pode, ele próprio, vir a ser julgado.
O antigo sistema de autorização legislativa para abertura de processo garantia a liberdade de movimento dos congressistas; entretanto, em razão da impunidade de alguns, por apoio corporativista, o sistema terminou revogado. E terminou, de fato, no caso Marcos do Val, quando o STF, por um de seus juízes, humilhou o senador e o Senado, com a cumplicidade da imprensa e de juristas — lembrando que, no Brasil, jurista é, muitas vezes, quem empresta o direito à jura.
Pequeno demais, sob Pacheco e Alcolumbre, o Senado capitulou.
As garantias institucionais são, literalmente, institucionais e não pessoais. A imunidade parlamentar, em gênero, foi estabelecida em favor da vítima e não do réu. Réus são réus e são bem diferentes de vítimas. No Brasil, está tudo invertido, aos costumes, apenas para confundir o debate e impedir que mudanças mudem alguma coisa. É assim há séculos. Faoro bem elucida tudo: este país oficial é tão curioso que até o sistema tributário — que o sustenta — é complexo para permitir enganar pobres e possibilitar a fuga de ricos.
Haverá uma eleição para renovar dois terços do Senado — correspondentes a cinquenta e quatro senadores — mas o que se vê, pelo menos na Paraíba, é que os mesmos nomes familiares estão na disputa. Não há renovação nem nas expectativas. É de dar pena e dó. O Senado é, sim, responsável pela crise. É dele a competência para julgar juízes. Mas não o faz, porque está amarrado pelo rabo — e não por ideias comungadas em cabeças.
Ao escolher Alcolumbre e Motta, as Casas do Congresso se apequenaram ao seu tempo e modo, transformando parlamentares em caríssimos despachantes de luxo, que se mudaram de representantes para atravessadores.
A culpa é do Senado. Mas o Senado é eleito pelo povo. Portanto, a culpa é do povo.
Eu estive na equipe que assessorou a famosa CPI do Judiciário, que Antônio Carlos Magalhães, então presidente do Senado, instalou para investigar denúncias que chegavam à Casa. Apesar das discussões havidas, a CPI funcionou e chegou, mesmo (vejam que curioso e paradoxal), a cassar um senador.
É, portanto, uma questão da dignidade do ocupante do mandato e não de um tal abstrato sistema. A culpa é do Senado, sim, mas por derivação. A culpa original é do povo, que fica elegendo seus representantes segundo uma lógica familiar e de relação dependente; termina escolhendo atravessadores.
Se o STF exorbitou — e muito — é porque o Senado se permitiu, desde as escolhas, ao consentir que por lá passassem juízes sem nenhuma condição de pertencer a uma Corte Suprema ou porque deixa de apreciar os inúmeros (e populares) pedidos de impedimento que se avolumam na Casa.
Nesse particular, vale observar um detalhe: o poder (sem regra nenhuma) do presidente do Senado para aceitar ou não a tramitação de processo, sem respeitar a prevalência lógica do plenário — e sem prazo nenhum. Até parece que se combinou assim: os presidentes das Casas Congressuais agem pessoalmente (por obstáculo), como o presidente da República age por medida provisória e os juízes do STF por liminares. Eles não se controlam: chantageiam-se!
Em nada disso há República.
Na atual fase, em que há um vazio claro de lideranças legítimas, ausência de apoio popular e cultura da mediocridade abusiva, é comum que tragam aquela famosa exortação atribuída a Rui:
“De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.”
Haverá uma eleição no próximo ano: o povo pode julgar indiretamente o STF ao eleger senadores dignos da República.
Enfim, ou se elegem representantes — ou se elegem intermediários. E quem elege intermediários não tem República: tem balcão.
