quinta-feira, 18 de dezembro de 2025
O júri
18/12/2025

“Eles só vão entender o que eu falei

no esperado dia do eclipse.”

Raul Seixas

“No cume calmo do meu olho

que vê assenta a sombra sonora

dum disco voador”

Raul Seixas

O júri popular é uma instituição tão sagrada que é anterior e maior que a própria Constituição. Anterior, porque nasce antes dela; maior, porque a própria Constituição assim o reconhece ao preservá-lo no instante originário do poder constituinte.

Por não estar no rol dos órgãos do serviço públicojudiciário, mas no estatuto das garantias fundamentais, o júri constitui uma reserva primária do juízo natural que, a meu ver, prefere qualquer outro, ainda que constitucionalmente instituído, mesmo em instante originário. Já escrevi sobre isso há alguns anos.

O júri é o trabalho social sobre os fatos: como a comunidade que os presencia é capaz de julgá-los. Nesse ponto, a instituição é amplamente difundida, embora com variações e alcances distintos, nos principais sistemas jurídicos do mundo. É como se a sociedade tomasse para si o domínio da factualidade, contemporizando-a ao seu modo e confrontando-a com as imagens matriciais da lei.

No Brasil, a tradição judicial exigiu domar formalmente essa escolha social, relegando o júri à última estação do processo penal específico. Nos Estados Unidos, ao contrário, o júri abre ou não o processo, funcionando como filtro contra o poder de acusar.

Vivemos, porém, um tempo peculiar: os fatos passaram a ser disputados como produtos narrativos. Já não se pergunta apenas o que ocorreu, mas quem conseguiu impor a versão mais conveniente. Nesse cenário, torna-se necessário esvaziar a legitimidade do júri, rebaixando-o a peça decorativa de uma liturgia patrimonialista e bacharelesca — afinal, nada deve escapar ao monopólio interpretativo dos “doutores da lei”. O próprio Cristo foi vítima deles.

O que impressiona no episódio de Cuiabá é o efeito septicêmico. O Supremo Tribunal Federal já ironizou manifestações da OAB e até ameaçou advogado em plena tribuna — espaço que deveria ser o altar máximo da liberdade de defesa. Era previsível que tais gestos produzissem efeito pedagógico.

A Ordem dos Advogados do Brasil, é verdade, ocupa um papel constitucional extravagante, inexistente para qualquer outra entidade associativa. Trata-se de um resíduo corporativista pouco recomendável a uma Constituição democrática. Ainda assim, zombar da advocacia e ameaçar expulsar advogados em sessão do Tribunal do Júri não atinge a OAB: atinge o próprio júri.

No plenário, a ameaça dirigida à defesa viola, da defesa, a plenitude – essa garantia expressa – e rompe a imparcialidade objetiva do julgamento. No júri, a postura do juiz não é neutra por definição: ela influencia diretamente o conselho de sentença. A liturgia não é ornamento; é condição de validade. Um júri conduzido sob intimidação institucional nasce viciado.

Ao constranger a defesa e expulsá-la do espaço deliberativo, a magistrada não demonizou advogados; vilipendiou o soberano Tribunal do Júri, este sim o verdadeiro ofendido.

Isso me remete ao texto a que já me referi — cujo link deixo ao final — e, do texto, a uma passagem de Thomas Jefferson, um dos pais fundadores da democracia americana. Nos Escritos Políticos, ao tratar da participação popular nos ramos do governo, Jefferson observa que os cidadãos:

“não estão aptos para julgar questões de direito, mas são plenamente capazes de julgar questões de fato. Na forma do júri, determinam todas as questões de fato.”

E reforça a escolha pelo povo no Judiciário quando afirma que, se tivesse de optar:

“entre excluir o povo do departamento legislativo ou do judiciário, preferiria excluí-lo do legislativo”.

O júri não é perfeito. Nunca foi. Mas é humano, popular e constitucionalmente soberano. E toda vez que se tenta domesticá-lo pela intimidação, o que se destrói não é um rito antigo — é a última trincheira democrática do processo penal: a legitimidade cidadã.

Como advogado, sempre reclamei da corporação OAB (curioso e ironicamente, pago duas anuidades) por apenas estacionamento nos fóruns e tribunais. Depois acrescentei o direito de saber das pautas das sessões dos tribunais. Hoje, preciso de garantias profissionais (quiçá de vida), mesmo sendo mais poeta do que advogado.

Ah! Numa democracia relativa, até métodos fascistas servem para salvá-la de si mesma – e do povo.

Referência

https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/466/r141-19.pdf?sequence=4&isAllowed=y

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