- Por Lier Pires Ferreira e Renata Medeiros
A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas foi criada em 1927 pelo ucraniano L.B. Mayer,
co-fundador da Metro-Goldwyn Mayer. Portanto, não é surpreendente que o Academy Awards,
o prémio mais cobiçado do cinema mundial, tenha certo caráter conservador, expressando os
ideais e os valores do establishment cultural norte-americano. Esse caráter conservador está
presente, por exemplo, na escolha de Sem Chão como melhor documentário do Oscar/2025. Em
que pese sua força poética, é desconfortável pensar que as vozes dos palestinos Basel Adra e
Hardman Ballal dependeu da colaboração dos israelenses Rachel Szor e Yuval Abraham para
ecoar.
Algo similar aconteceu com o prêmio de melhor atriz. As “sessentonas” Demi Moore e Fernanda
Torres foram preteridas pela jovem Mikey Madison. Aos 25 anos, a talentosa Madison (melhor
atriz) interpretou uma stripper do Brooklin, que vive um conto de fadas com um playboy russo.
Embora o diretor Sean Baker (melhor direção) seja conhecido por sua pegada realista, Anora
(melhor filme) replica a estigmatizante história da “gata borralheira” salva (e depois cuspida) por
um príncipe encantado, sem problematizar a condição feminina imposta pela indústria do sexo.
O sufocante estarismo exposto por Moore em A Substância ou a resiliência feminina de Torres
em Ainda Estou Aqui, foram menos palatáveis ao Academy Awards.
Em que pese seu caráter conservador, nesse ano a Academia deixou um recado muito claro
quanto aos riscos do autoritarismo nos Estados Unidos e no mundo. Não por outro motivo, dentre
os agraciados há muitos filmes que têm a liberdade democrática como pano de fundo. É o caso
de Sem Chão, que, sem distribuição oficial em solo americano, enfrentando explícita censura,
denuncia o extermínio palestino pelas mãos do governo Netanyahu, incondicionalmente apoiado
por Democratas e Republicanos. Também é o caso de Brutalista, estrelado por Adrien Brody
(melhor ator). O filme conta a história do judeu-húngaro László Tóth, que foge de uma Europa
devastada pela Segunda Guerra (1939-1945) para uma América que, então, representava um
porto-seguro para imigrantes de diversas nacionalidades.
Ainda Estou Aqui (melhor filme estrangeiro) segue a mesma trilha. A película de Walter Salles
traz a luta de Eunice Paiva (Fernanda Torres) no contexto do assassinato de seu marido, o ex-
deputado Rubens Paiva (Selton Mello) nos porões da ditadura militar. Sem caráter militante, o
filme nos convida a refletir sobre os horrores da ditadura militar, que, sob a bandeira do
anticomunismo, do amor à pátria e da ordem, fez do assassinato e da tortura uma política de
Estado, tratando adversários como inimigos.
Por isso, devemos desconfiar de líderes extremistas como Donald Trump e outros que “flertam”
com o fascismo. O argentino Javier Milei, o salvadorenho Nayib Bukele e o alemão Max Krah,
assim como o francês Jordan Bardella e Giorgia Meloni, a primeira mulher a ocupar o cargo de
primeira-ministra da Itália, também estão nessa categoria.
O alerta também vale para o Brasil. A democracia duramente reconquistada em 1985 não terá
vida longa se não for defendida pela sociedade. Os atos de 08 de janeiro indicam que, ao arrepio
da verdade histórica, muitos ainda desejam uma intervenção salvacionista das Forças Armadas,
relativizam os crimes cometidos pela ditadura e fazem um balanço positivo do regime-militar
(1964-1985).
A seleção dos agraciados neste ano com o Academy Awards confere uma rara oportunidade
para que norte-americanos e europeus olhem pelo buraco da fechadura e antevejam o que pode
lhes acontecer caso a democracia seja varrida para debaixo do tapete. O mesmo vale para o
Brasil, onde cinéfilos e carnavalescos se dividiram entre o Oscar e a Marquês de Sapucaí. Em
sua diversidade, a seleção do Oscar/2025 deixa uma forte mensagem: regimes autoritários
geram dor e sofrimento. Quase 80 anos após o fim da Segunda Guerra, a sombra do
autoritarismo está novamente presente no Ocidente. Logo, a luta pela democracia tem que ser
redobrada, pois, na política como na vida, de nada vale a forma sem substância.
