Discípulos e Arquipélagos:
D’O Livro das Indiferenças
Perdão ou a dualidade do divino
No paraíso, ao contemplar a imagem de Judas na face de Deus, Jesus pediu-lhe perdão pelo destino e fez-se único.
Onde Judas via estigmas, Jesus via perdão.
Jesus não escolhe; projeta-se nas pessoas-modelos que chama a segui-lo.
Cada uma dessas pessoas tem uma carga da luz divina e, portanto, é uma sombra humana do Cristo.
A onisciência divina estava traduzida na projeção do chamamento;
a onipresença, na profecia visionária;
e a onipotência, na determinação de ser humano, apesar de Deus.
Não há meio mais propício ao conhecimento do que viver a situação que se estuda.
Ao fazer-se a sua própria criatura, Deus tinha que terminar;
mas terminar ressuscitado em todas as criaturas que se projetou.
A Igreja é Cristo ressuscitado.
Por isso Deus venceu a morte.
Vamos tomar alguns exemplos das projeções de Jesus na nomeação dos seus discípulos.
Pedro é o humano, demasiadamente humano;
o que responde para fora antes de se justificar para dentro.
Impulsivo, frágil, voluntarioso, ama e cai — mas ama de novo.
As lágrimas de Pedro, após o cantar do galo,
vieram de uma fonte no paraíso que foi aberta pelo olhar de Jesus.
João é o maior esforço divino de ser humano: o coração.
É aquele que repousa no peito do Mestre —
e escuta o que os outros não ouvem: o ritmo do eterno.
O Cristo do afeto, da intimidade, do amor que não explica, mas permanece.
Tiago, filho de Zebedeu, é o trovão contido.
Com João, é filho do clamor, mas aprende o silêncio da cruz.
Tiago é o Cristo da entrega ardente — e do testemunho martirial.
Foi o primeiro a dar a vida, entre os doze, para provar que o Reino não é força, mas fidelidade.
Curioso é que ele e o irmão seguem a Jesus diante do silêncio de Zebedeu, o pai.
Zebedeu crê na missão e os deixa partir.
Mas a mãe, depois, pede a eternidade: “Concede que se assentem à tua direita e à tua esquerda…”
O pai crê no chamado. A mãe, na promessa. Ambos creram. Ambos entregaram.
Tomé, o gêmeo, é a vida testada no empirismo.
A razão encarnada que precisa tocar para crer.
Mas quando crê, mergulha mais fundo que os outros: “Meu Senhor e meu Deus!”
Tomé é o Cristo da ciência — o logos que busca o divino na carne.
André é o evangelista do indivíduo.
Vê a alma, encontra o invisível.
Apresenta a Pedro, a Nicodemos, ao menino dos pães.
Sabe que cada milagre começa com um gesto de fé pessoal.
André é o Cristo da atenção ao detalhe humano.
Mateus, o cobrador de impostos, é o Cristo do registro.
A fé que se converte em palavra escrita.
Organiza o espiritual em forma visível.
Mateus é o Cristo que escreve, que estrutura, que lembra.
Filipe é a inquietude que quer ver o Pai.
Busca sem parar.
E ouve de Jesus: “Quem vê a mim, vê o Pai.”
Filipe é o espelho da busca, a sede que só o amor sacia.
Bartolomeu (Natanael) é o sem falsidade.
A alma simples que reconhece Deus debaixo da figueira.
O coração sincero, que não teme ser visto,
e encontra o Messias na palavra de um amigo.
Tiago, filho de Alfeu, é a constância silenciosa.
O Cristo da permanência discreta.
Não aparece nos grandes momentos, mas sustenta a fé com sua humildade.
Tadeu (Judas Tadeu) é a fortaleza da interrogação justa.
“Senhor, por que a nós e não ao mundo?”
E ouve: “Faremos morada em quem ama.”
Tadeu é o templo interior, onde a Trindade habita em segredo.
Simão, o Zelote, é o fogo convertido.
De nacionalista fervoroso a pacificador do Reino.
O Cristo que abandona a espada e abraça o amor como revolução definitiva.
Judas Iscariotes é o Ego.
A parte de Jesus que desejava controlar.
A tentação da medida, do cálculo, do controle.
Conhecia o valor do perfume, mas não o custo do amor.
Jesus o alimenta, confia-lhe o tesouro, partilha o pão.
Ao dizer “o que tens de fazer, faze-o depressa”, Jesus despede-se do próprio ego.
Judas é a sombra da luz.
A parte que, sem amor, não suporta a plenitude divina.
Eu me pergunto:
Quem teceu a corda com que Judas se enforcou?
O mesmo que entrelaçou o cordão que segura meu crucifixo?
Talvez.
Talvez, no paraíso, ao contemplar a imagem de Judas na face de Deus,
Jesus tenha pedido-lhe perdão — e feito-se único.
Matias vem depois.
Não foi chamado por Jesus, mas pelo Espírito da comunidade.
Matias é o Cristo coletivo.
A escolha que nasce do consenso dos fiéis.
A lembrança de que a luz pode voltar mesmo após a sombra.
E por fim, há aquele jovem nu.
Na noite da prisão, coberto apenas por um lençol, foge despido.
(Marcos 14, 51)
Esse jovem é o Self de Jesus.
A alma exposta.
A verdade sem defesa.
A essência que, ao ser perseguida, abandona até o pano que a cobre.
Ele foge, mas não desaparece.
Volta no terceiro dia — glorificado.
Ou talvez nunca tenha saído dali.
Apenas esperou que o véu se rasgasse para ser visto como é: puro, inteiro, verdadeiro.
Treze homens. Treze arquétipos. Treze reflexos da luz.
Cristo não fundou apenas uma Igreja.
Ele fundou um espelho.
A pergunta é:
Em qual deles você se reconhece?
E que parte de Jesus você tem deixado viver em você?