O velho político tinha um hábito incomum, quando precisava demitir algum auxiliar já visado pelos rumores da “Rádio Corredor”. Ele próprio redigia cartas anônimas remetidas para si mesmo, como se alguém de fora estivesse denunciando um subordinado, criando uma versão mais “tangível” do ghostwriter.
Imponente naquela mesa sempre limpa, sinal de objetividade, convocava o suspeito, apresentava os libelos epistolares e, com aparente casualidade, abordava a pasta e os serviços. Tocava nos pontos sensíveis e observava a reação.
Embora não fosse intelectual, o velho político redigia as cartas com astúcia e simplicidade, escolhendo palavras que soavam convincentes e provocavam o efeito desejado. Não lhe movia o gosto literário, mas a habilidade prática de usar o texto como arma política. Era um homem hábil e, sobretudo, um amigo leal, capaz de conciliar dureza e camaradagem com rara destreza. Para evitar o cotejo investigatório elucidativo, especialmente sobre o estilo, a carta era exibida, mas não entregue à posse.
Costumava escrever essas cartas deitado em uma rede, na varanda de uma casa à beira-mar. Enquanto a brisa vinha do oceano, fitava o horizonte e pensava na família do acusado. Sentia pesar, mas sabia que precisava ser firme e honesto. O balanço da rede marcava o ritmo das palavras: compassivas, mas duras; humanas, mas inegociáveis.
Naqueles tempos, circulavam também uns tais boletins eleitorais — igualmente anônimos, cheios de insinuações — cuja lavra muitos atribuíam a intelectuais da cidade. Era comum que se lhes creditasse a autoria de boa parte das cartas que o velho político utilizava. Ele alimentava a versão com gestos e olhares, mas sem nunca confirmar, mantendo o mistério que lhe favorecia.
À terceira carta, o tom mudava: a audiência tornava-se grave e direta. O velho expunha suas verdadeiras intenções, abrindo espaço para o contraditório. De tão poucas, as absolvições credenciavam os acusados ao grau de probidade, imunizando-os.
Como defesa, geralmente se alegava que as denúncias eram fruto de pecados — inveja, rancor, cobiça — de rivais ou desafetos. As emotivas lágrimas eram más advogadas; o arroubo da petulância, ainda pior. Apenas a surpresa genuína, quando bem documentada, salvava alguns. E assim, paixões e quedas se resolviam em poucos passos. Afinal, dizia-se, o julgamento que condena ao inferno é processado no céu.
Poucos conheciam o método, até que corregedorias, conselhos de contas e auditorias assumiram o papel. Não se sabe se com igual eficácia.
Bartolomeu Marinardo da Fonseca Silva dizia, repetindo Allyrio Wanderley: “O povo é o pseudônimo da irresponsabilidade”. Eu acrescento: … também da impunidade e do anonimato. Por isso se falava: O povo tá dizendo.
A família, avaliando o espólio e sem saber que destino dar ao relicário dessas cartas, lançou-o ao fogo. O papel das letras e palavras voltou em misterioso fumo ao abrigo eterno. O de cujus, sem intenção burocrática ou memorial, deixou, sem querer, ao folclore político, um legado que hoje caberia em aulas de compliance.