sexta-feira, 5 de dezembro de 2025
De Raízes
28/07/2025

A digito cognoscitur leo

O alimento da esperteza é o esperto — e ela o engorda para isso!
D’O Livro das Indiferenças

Os dedos longos de Thelonius Monk lhe permitiram a beleza do álbum Underground; como Rachmaninov levou ao eterno a exclusividade de interpretar, com o virtuosismo necessário, os Concertos 2 e 3. Os desenhos papilares, entretanto, distinguem, ab ovo usque ad mala, todos os seres humanos, como as listas separam a individualidade das zebras. Cada zebra é uma surpresa, como nada humano há de surpreender mais do que a realidade dos sonhos vivos.

Arrimava uma família no interior do Ceará, uma idosa senhora sustentada menos por remédios e meizinhas e mais por orações de netos, bisnetos (cujos nomes se perderam na sua memória) e três trinetos, considerados pelos nomes dos reis seguidores da estrela de Belém. O único filho restante, dos quinze que criou, mercê das graças de Deus, entre os vinte e três que deu à luz, deambulava em um hospital à custa de pouco mentar. Restou-lhe, à vida tamanha, segundo creditava, um café quente bem cedo, depois do terço debulhado, seguido de um cigarro de palha seca de milho de ano bissexto, que conservava, junto com um fumo brejeiro plantado em ano par, como relíquia de família, conforme lhe segredou sua bisavó, que conheceu quando mocinha.

Quase nada lembrava do marido, de quem pouco se ocupou fora das obrigações que jurou, a pedido do pai: da cozinha ao quarto, quando era de querer dele. Também um sono de tarde, pegado adiante do almoço, contribuía. Na receita se incluía, nas noites voluntárias, um sono largo, começado com o acender das estrelas e terminado nas primeiras labaredas de sol. Contava cento e dois anos até a semana passada. Todos vividos numa higidez lúcida que conseguia, ainda dos olhos, o milagre da linha na agulha de fazer barra, sem necessitar de uma segunda tentativa.

Não hei de falar-lhe o nome. Sei somente do seu termo, na data aprazada, e do velório medido às ‘incelências’ das mais puras, cujo recolher parecia ter sido sua academia. A liturgia na igreja da cidade, consagrada à Virgem da Conceição, não foi menos detalhada que o velório cantado ao Ofício. Das poucas letras que aprendeu, deixou, com a garantia supletiva da sua impressão digital, um pequeno testamento, terror dos acólitos pensionistas: sabendo eles que com ela iam-se embora as duas vigas que sustentavam a aldeia do sítio a que emprestara o domínio do seu nome – o ganho dela e o do falecido.

Creio, com a determinação que a energia criadora autoriza, que também é do crédito da longevidade a viuvez nos últimos cinquenta anos e o instinto matriarcal que lhe marcou na região.

Aqui, me dou uma pausa.

Sabendo que um neto seu fora assassinado na capital da Paraíba, exigiu de todos os varões da família que trouxessem à sua presença os responsáveis pelo ato, para que ela os submetesse a julgamento. Não se sabe como se deu o cumprimento da ordem – nem se era a história verdadeira (excetuada a morte do descendente) – mas duas cruzes se veem da janela de sua cozinha numa colina sem nome que se acende em toda manhã carregando um nome.

Mas, na semana passada, guardadas todas as cerimônias, ela se foi. Banhou-se, vestiu-se, arrumou-se, dobrou o ruzaro nos dedos – e se foi. Sabia aonde ia, pelo modo de partir.

Quando o padre Argemiro fechou, na nave, a missa, e os sinos dobravam o tino, um genro seu, do qual a ‘de cujus’ guardava severas reservas, foi o primeiro a se escalar na alça do caixão. Encarregou-se de cadenciar os passos e ditar o ritmo da procissão fúnebre. Quando o beco da prefeitura foi se aproximando, tal que dividia, pela metade, o caminho da igreja ao cemitério, o maestro foi diminuindo as passadas a ponto de provocar uma parada, como as escolas de samba fazem o recuo no desfile.

Foi aí que apareceu, para a sua última despedida, o gerente do banco, cuja agência se instalava por ali, empunhando a almofada do carimbo e uns papéis. Beijou a mão da defunta, rezou algumas orações, lavou-lhe a mão com uma água que se sugeria benta e saiu da lista do enterro acompanhado do genro, que já se cedera à substituição na posição de condutor.

No dia seguinte, descerrado o testamento aos sensíveis olhos da família, deu-se que as propriedades iriam para a igreja juntamente com a poupança cuja soma o gerente e o genro contam, em espécie, n’alguma cidade de litoral descansado. Deles não se soube mais nada fora disso.

…ou terá sido assim:

Foi aí que o maestro correu ao banco, cuja agência se instalava no beco, mirando a almofada do carimbo e uns papéis, consultou o gerente se ele podia tirar da defunta as impressões digitais para um último e definitivo saque, mas não o convenceu. Saindo vencedoras a igreja e a caridade, destinatárias universais do espólio.

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