- Por Higor Maffei Bellini
Por vezes, uma mesma situação pode trazer a necessidade de duas análises distintas, uma pela justiça desportiva e outra pela justiça criminal. São exemplos desta dupla necessidade, acusações de ocorrência de racismo, injúria racial ou manipulação de resultados.
Existe essa necessidade da dupla análise, pois de um mesmo fato, quando acontece em razão ou durante a disputa de uma competição, pode gerar competências administrativas junto à chamada justiça desportiva, que não é um ramo do poder judiciário, sim, é isso mesmo, não existe justiça desportiva no sentido correto das palavras, bem como gerar consequências jurídico-criminais, que serão avaliadas pela justiça criminal.
Se faz necessário trazer uma decisão do Superior Tribunal de Justiça o STJ que declara expressamente o fato da justiça desportiva não ser integrante do poder judiciário, para que não paire dúvidas e se pense, que esse raciocínio é uma criação minha:
CONFLITO DE ATRIBUIÇÕES – TRIBUNAL DE JUSTIÇA DESPORTIVA – NATUREZA JURÍDICA – INOCORRÊNCIA DE CONFLITO.
1. Tribunal de Justiça Desportiva não se constitui em autoridade administrativa e muito menos judiciária, não se enquadrando a hipótese em estudo no art. 105, I, g, da CF/88.
2. Conflito não conhecido.
(CAt n. 53/SP, relator Ministro Waldemar Zveiter, Segunda Seção, julgado em 27/5/1998, DJ de 3/8/1998, p. 66.)
A justiça desportiva tem competência apenas para aplicar sanções no âmbito desportivo, conforme previsto na legislação desportiva CBJD e nos regulamentos das federações desportivas. No entanto, ela não pode declarar a existência de um crime, pois isso é uma competência exclusiva da justiça criminal.
Contudo, muitas vezes, na vontade de entregar uma rápida resposta à sociedade, que não compreende a verdadeira natureza da justiça desportiva, essa acaba por se antecipar e roubar a competência da justiça criminal, declarando a existência de um fato tipificado como crime, para poder aplicar a penalidade desportiva correspondente àquela tipificação.
Contudo, tal procedimento de declarar a existência de um crime pela justiça desportiva fere a constituição federal, pois viola o princípio constitucional da presunção de inocência, que garante que todos sejam considerados como inocentes, enquanto não existir a sentença criminal condenando a pessoa, sem que seja mais possível a apresentação de recursos pela defesa.
Assim, quando um fato é tipificado como crime, a justiça desportiva não pode antecipar-se à decisão judicial criminal para aplicar penas baseadas na suposição de que um crime ocorreu.
Às garantias e aos direitos individuais trazidos no artigo 5o da Constituição Federal, não podem ser esquecidos, pela vontade de alguns de demonstrar que nas esferas esportivas a resposta jurídica é rápida, que nas competições esportivas não são aceitas determinadas condutas, bem dos envolvidos na competição. O direito individual à garantia da presunção de inocência e ao contraditório e ampla defesa devem prevalecer também no âmbito desportivo.
Somente após o trânsito em julgado de uma sentença condenatória na justiça criminal, é que essa decisão pode ser considerada, em âmbito desportivo como a demonstração de que determinado fato existiu, para daí se aplicar a penalidade sobre aquele fato. Nunca antes, pois se depois se comprova que a inocência da pessoa, junto a esfera penal, pela comprovação de inexistência do alegado fato a penalidade desportiva se demonstrará ilegal e injusta
Desta maneira a justiça desportiva deve respeitar o princípio da presunção de inocência e não pode substituir-se à justiça criminal. Enquanto não houver uma decisão definitiva na esfera penal, a justiça desportiva pode atuar apenas com base nos seus próprios regulamentos e em infrações estritamente desportivas, sem fazer juízo sobre a ocorrência de crimes.
Mas como no Brasil a justiça desportiva se esquece que não pode declarar que ocorreu um fato considerado como crime, para aplicar as consequências desportivas sobre ele, o auditor, não se deve usar o termo juiz para quem compõe as esferas da justiça desportiva, ao fazer a declaração de que um fato criminoso ocorreu, como por exemplo um ato de racismo, poderá ser interpelado pelo apenas acusado na esfera penal, porém já condenado na desportiva, com que competência tal fato tipificado como crime foi declarado como existente, pelo auditor, que sendo apenas mais um cidadão, não tem esse poder.
Se existe a presunção legal de inocência, a pessoa que terá a sua conduta analisada pela justiça desportiva, não pode ser taxada pela criminosa, por ser declarado na esfera desportiva, que ela cometeu o ato, também tipificado como crime, e ficar durante todo o tempo da instrução processual penal, ou enquanto aguardados julgamentos dos recursos, sendo tido e havida como criminosa, pois um auditor da justiça desportiva declarou que um fato existiu, dentro da rapidez com que as decisões são tomadas na justiça desportiva, sem esperar a decisão do criminal.
O STJ já declarou que é irrelevante para a justiça as consequências de um julgamento na justiça desportiva, como se observa abaixo:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. AGRESSÕES. FÍSICAS E VERBAL. MORAL. ÁRBITRO. PARTIDA DE FUTEBOL. RESPONSABILIDADE CIVIL. JOGADOR. ATO ILÍCITO. CONFIGURAÇÃO. CONDUTA. DESPROPORCIONALIDADE. DANO À HONRA E IMAGEM. CONFIGURAÇÃO. REPARAÇÃO DEVIDA. JUSTIÇA COMUM. CONDENAÇÃO. JUSTIÇA DESPORTIVA. IRRELEVÂNCIA.
1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. A controvérsia a ser dirimida no recurso especial reside em verificar se as agressões físicas e verbais perpetradas por jogador profissional contra árbitro de futebol, na ocasião de disputa da partida final de importante campeonato estadual de futebol, constituem ato ilícito indenizável na Justiça Comum, independentemente de eventual punição aplicada na esfera da Justiça Desportiva. 3. Nos termos da Constituição Federal e da Lei nº 9.615/1998 (denominada “Lei Pelé”), a competência da Justiça Desportiva limita-se a transgressões de natureza eminentemente esportivas, relativas à disciplina e às competições desportivas. 4.O alegado ilícito que o autor da demanda atribui ao réu, por não se fundar em transgressão de cunho estritamente esportivo, pode ser submetido ao crivo do Poder Judiciário Estatal, para que seja julgado à luz da legislação que norteia as relações de natureza privada, no caso, o Código Civil. 5. A conduta do jogador, mormente a sorrateira agressão física pelas costas, revelou-se despropositada e desproporcional, transbordando em muito o mínimo socialmente aceitável em partidas de futebol, apta a ofender a honra e a imagem do árbitro, que estava zelando pela correta aplicação das regras esportivas. 6. O evento no qual as agressões foram perpetradas, final do Campeonato Paulista de Futebol, envolvendo dois dos maiores clubes do Brasil, foi televisionado para todo o país, o que evidencia sua enorme audiência e, em consequência, o número de pessoas que assistiram o episódio. 7. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp n. 1.762.786/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 23/10/2018, DJe de 26/10/2018.)
Razão pela qual o auditor relator ou os auditores, que acompanharem o relator, podem responder pelos crimes contra a honra da pessoa, pois estão afirmando que ele cometeu um ato criminoso, antes de a justiça criminal decidir se ele ocorreu ou não.