Nos últimos dias, a mídia brasileira se debruçou sobre o “tarifaço” que Trump impôs ao país. Em geral, mesmo a grande imprensa corporativa cerrou fileiras com o governoLula, considerando inaceitáveis as chantagens da Casa Branca sobre o Brasil. Afinal, somos soberanos.
Há diferentes razões para (mais) essa ação intempestiva do líder norte-americano. Dentre estas, está a pressão auricular que Eduardo Bolsonaro, autoexilado nos EUA, exerce sobre Steve Bannon, o “guru geopolítico” de Trump. Por outro lado, e muito mais importante, é a queda de braços das “big techs” americanas com o Brasil, para que o país não avance na responsabilização dessas empresas por crimes cometidos por seus usuários nas redes sociais, não obstrua a instalação dos onerosos “data centers” em solo pátrio e, principalmente, não interfira no desenvolvimento das suas ferramentas de inteligência artificial (IA). Diante de um Legislativo lascivo, mais interessado em emendas parlamentares do que na defesa dos interesses nacionais, o STF e o Planalto devem ser imobilizados para que o Brasil continue a ser uma terra com legislações flácidas, um território livre para a ação dessas “big techs”, mesmo que isso implique na disseminação de discursos de ódio, crimes digitais emanipulação político-eleitoral.
Mas há uma outra razão, estruturante, para o “tarifaço” de Trump, na sequência da 17ª Reunião de Cúpula dos BRICS, no Rio de Janeiro: a disputa hegemônica entre China (potência desafiante) e EUA (potência desafiada). Marcada por tensões econômicas, competição científica e tecnológica, além de disputas geopolíticas e divergências políticas, essa dinâmica tem redefinido alianças, moldado conflitos regionais e influenciado a economia mundial.
As disputas entre China e EUA possuem vários cenários e nuances. A mais visível é a disputa econômica, financeira e comercial. Desde 2018, ainda no primeiro mandato de Trump, essas tensões têm provocado guerras tarifárias e diminuição do comércio recíproco e impactos sobre diferentes cadeias produtivas globais. Enquanto a China avança no comércio, inclusive sobre a África, os EUA insistem no binômio pressão política e intervenção militar. Já no campo científico e tecnológico, China e EUA disputam palmo a palmo patentes e propriedades intelectuais, batendo-se em áreas sensíveis como 5G, semicondutores e IA. Ao passo que os chineses avançam em suas zonas-piloto de inovação, as famosas AIPZs, os EUA respondem com sanções e restrições à presença de empresas chinesas em seu território, como aconteceu recentemente com o Tik Tok.
O cenário não é diferente no campo bélico militar. OMar da China, por exemplo, tem vivenciado essas disputas, tanto no que diz respeito à soberania chinesa sobre Taiwan, quanto no que tange às movimentações militares postas em marcha pelos dois países e seus principais aliados. No Oriente Médio, a presença norte-americana é hegemônica, com aliados importantes como Arábia Saudita e Israel. O Irã, tradicional aliado sino-russo, parece isolado. Todavia, na Ásia Central, o cenário é distinto. Cazaquistão e países vizinhos estão cada vez mais integrados à China, em particular pela Nova Rota da Seda. Essa aproximação é potencializada pela aliança sino-russa, pela qual, sem muita sabedoria ou prudência, a águia americana continua a empurrar o urso russo para o colo do dragão chinês.
Por fim, no campo político-ideológico, os EUA, outrora patronos da ordem internacional, hoje são os principais agentes disruptivos do multilateralismo e da governança global. Paradoxalmente, a China, um sistema de partido único e com forte presença do Estado, surge como baluarte da governança global, defendendo suas principais instituições, como ONU e OMC, além de buscar ampliar sua presença em organismos-chave como o FMI e o Banco Mundial.
É nesse contexto que o Brasil está inserido. Se por um lado a polarização crônica entre Lula e Bolsonaro ainda captura o imaginário político e social, a presença brasileira nos BRICS e sua tradição diplomática focada nos interesses nacionais, incomodam o “grande irmão do Norte”, que, sem credenciais democráticas e negociais, busca impor à força os seus interesses. País emergente com inarredável vinculação ocidental, o Brasil acorda a cada dia para o fato de que uma aliança cega com a América não atende aos seus interesses soberanos. É o caso do setor agrário-exportador, que importa fertilizantes e outros insumos da Rússia e que vende sistematicamente para o China. O mundo gira. Hoje, embora o mercado americano seja muito importante, ele já não é vital para o Brasil.
As disputas sino-americanas são a pedra angular da construção de uma nova ordem internacional. Essa nova ordem poderá ser mais cooperativa ou mais conflitiva. Hoje, as ações dos EUA apontam mais para o conflito. Mesmo em áreas com grande potencial cooperativo, como saúde global, mudanças climáticas e solução pacífica de controvérsias, inclusive no campo nuclear, Donald Trump, mais do que qualquer outro líder global, aponta para a força como base da relação entre os EUA e o mundo. Não é diferente com o Brasil. A nós, portanto, para além das disputas internas, cabe uma postura equilibrada, nas quais os interesses nacionais prevaleçam sobre as picuinhas paroquiais.