Voltaram como saíram: abraçados, dançando e aos beijos. Mas foi mais rápido que o costume. A música que acompanhava os passos – cadenciando e harmonizando o ritmo – tocava, desde que chegamos por ali, na jukebox. Compramos todas as fichas disponíveis.
A vida só se conta nos símbolos. Nós não estávamos ali de graça.
Ao sairmos do Bar de Camões, depois de comermos a famosa “língua”, decidimos madrugar em Araújo e, se fosse o caso, amanhecer o dia. O trajeto era facilitado pela sonoplastia. De ida, era descendo – caso em que todos os santos ajudam. Alguém cantava “San Francisco” em um inglês sem sotaque, e nós tentávamos, num esforço de dobrar os beiços, formar o coral. Mal a música terminava a letra, em primeira vez, estávamos cruzando a General Osório, na altura do edifício dos dezoito andares.
Araújo era conterrâneo da gente, por assim dizer: jactava-se de ser de Monte Horebe e conhecia todo mundo de Jatobá. No seu grande álbum de identidades e outros documentos pendurados, poucos eram nossos.
Ganhamos a confiança e o crédito – e nunca esboçamos nenhum “xexo” por lá. O risco era muito alto, sob todas as perspectivas.
Estar localizado atrás do Teatro Santa Roza não era acidente imobiliário fortuito. Era, antes, uma extensão da coxia – bem ao modo. Poderia ser o descanso ou o ponto de meditação das outras peças com que a vida sedeixa copiar, à assistência dos que não conseguiram viver.
O “Cabaré de Araújo” preservava o bar, a jukebox, algumas mulheres que sobravam de Irene e Hosana (a preços acessíveis) e uns poucos quartinhos, separados por madeiras simples, que comutavam sons à libido que faltasse nos vizinhos.
Antes que o temor atual se acenda, é prudente afirmar: o acontecimento se deu no final da década de 70,
quando a ditadura era outra, e a doença venérea curava-se com Benzetacil, em doses graduadas – da blenorragia, a 1200 unidades, à sífilis ou ao cancro-mole, a 3600. Quem topava essas paradas precisava de músculos e coragem: a injeção levava qualquer ente vivo ao desmaio, sob o riso de uma enfermeira irônica, atendente do famoso Posto Farmacêutico da 1817. O “Chato” – aqueles estaláveis piolhos pubianos – ainda existia, e se curava com depilação e Baygon.
O retorno tão rápido nos impressionou. Não faltou o questionário:
- Oxe! Tá feito capote: “Vai ser bom. Num foi?”
- Essa foi a rapidinha, mesmo. Tem abatimento no preço, é?
- Ih! Brochou!?
Envoltos num romantismo de adolescentes namorados, riram como resposta e voltaram ao salão como bons “pés de valsa”.
Soltaram-se lá pela hora do “verdadeiro dono e patrocinador” aparecer. Voltando à mesa, a resposta para tudo estava pronta:
- Hoje a cena foi a música Cavalgadas, do Roberto Carlos. Foi o tempo de ouvi-la – na prática. Não resistimos a mais.
Disse assim, sem o menor pejo, e dedicou-se aos detalhes estimulantes do apetite da audiência. Tanto que, mal terminava – e, na mesa de seis, havia um único ouvinte – auxiliado pelo espelho que aumentava o ambiente avermelhado. Falava que tentava segurar-se, sem êxito, quando ela cavalgava, deixando por arreios os cabelos longos. E quando se enfrentaram, disse, desabaram “em gozo de vólupia ardente”, como na poesia do padre cearense. Riram a cota que precede ao pranto – e estavam ali de volta.
Então, alguém falou:
- A música é Cavalgada, no singular.
E ele respondeu:
- Se fosse só uma vez…
Por coincidência publicitária – ou complemento divino – dela se ouvia um mesmo relato, e um poema
composto aos pés, ao qual se acrescentou essa melodia.
Como diz Orlando Tejo: “Não sei se eu era ele, e nem sei se ele era eu.”
Clique aqui e ouça a música
Letra da Canção
Já não consigo mais medir o dorso dela
Com minhas mãos que usei para esse fim;
Ela sentada em volúpia sobre mim
Cavalgando numa imagem pura e bela.
E num gozo de gemido estridente,
Eu pegando o seu corpo a desabar
Sobre mim, que estava a gozar,
E com ela me sentido diferente.
Foi assim que terminei com um longo beijo
Aquela cena de amor e de desejo
Que o tempo marcou para nós dois.
O que houve, até hoje, é depois
Simplesmente assim sem menor pejo
Do que somos, do que sou e do que vejo