sexta-feira, 5 de dezembro de 2025
Bonasera, Ad Terrorem
24/11/2025

Toda nação que negocia com o terror aprende a obedecê-lo.

No décimo terceiro andar de um prédio público que rangia como confessionário antigo, dois “Conceitólogos” — especialistas na arte de dar nome ao indizível — reuniam-se para destrinchar a palavra mais maltratada do vocabulário nacional: facções.

O primeiro, Zeca, empilhava papéis como quem monta altar de santo cansado. O segundo, Maneh, mascava silêncio com a ironia de quem já viu conceitos morrerem soterrados por discursos ocos.

— O debate está perdido — disse Zeca, sem rodeios. — Virou guerra ideológica. Tentam plantar princípios para colher definição. Mas quem planta princípio não o colhe. Princípio dá sombra e fruto sempre em futuro distante. Conceito é semente.

Maneh ergueu o olhar, com aquele meio-sorriso de faca guardada.

— Então vamos ao fruto, Zeca. O que é facção no Brasil?

Zeca ajeitou os óculos.

— Tecnicamente, não é máfia. Nem cartel. Nem insurgência. Nem milícia. Nem…

Maneh levantou a mão, cortando a enumeração como quem desata nó cego.

— Zeca… você já leu O Poderoso Chefão. Puzo resolveu esse debate na primeira cena. Borges dizia: a novela inteira se revela no começo. Guimarães Rosa inventouuma palavra para esse raio inaugural do sentido: Nonada.E Puzo colocou tudo no pedido de Bonasera.

Zeca suspirou, vencido pela literatura — único terreno onde ele ainda recuava.

Maneh se inclinou:

— Bonasera vai ao Don porque o Estado falhou. Mas quando o Don aceita ajudá-lo… nasce o terror. O medo de não saber o limite do outro. Esse medo é a essência da máfia: não o crime, mas a incerteza. A lei pessoal é sempre vingativa. E, quando benéfica, transforma o legislador em santo. É assim que começam as tiranias: com favores travestidos de milagre.

Zeca coçou o queixo.

— Mas isso é romance…

— Romance que explica o Brasil — cortou Maneh. — Porque aqui tentam definir facção com moral e ideologia, quando o que vale é o mecanismo. As facções brasileiras já dominam quase 40% da população. Têm território, tribunais, impostos, polícia própria, monopólio de serviços. Criam Estado paralelo. E mantêm conúbio incestuoso com o Estado oficial.

Zeca arregalou os olhos.

Maneh prosseguiu, agora com a firmeza de quem põe nome na ferida:

— Isso não é “crime organizado”. Isso é terrorismo territorial. Terrorismo não se define pelo ato violento, mas pelo medo contínuo — o mesmo assombro de Bonasera: a insegurança, o temor difuso, a ausência de paz. No Brasil, o cidadão:  não sabe o limite do traficante, não sabe o limite da milícia, não sabe o limite da polícia (há até desautorização da polícia), e — triste admitir — não sabe mais o limite do próprio Estado. Bom que se diga: se terrorismo é uma guerra assimétrica pelo poder, as facções brasileiras não deixam mais dúvidas sobre o que são. O que falta é o Estado reconhecer e aceitar essa declaração de uma guerra da qual a população não consegue se defender sozinha.

O ar ficou denso, quase sólido.

— Então sim, Zeca — disse Maneh. — As facções brasileiras são organizações terroristas. E devem ser tratadas como tal. O resto é covardia conceitual mascarada de debate moral.

Zeca olhou para a pilha de papéis, como quem vê ruínas.

Maneh levantou-se, guardou seu caderno — o mais honesto objeto da sala — e caminhou até a porta.

Antes de sair, deixou o golpe final:

— Conceito bom não pede licença. Ele entra, corta e fica.E se o Brasil entendesse de conceitos, já teria percebido que vive num romance cujo começo explica tudo — e cujo fim ninguém vai querer, talvez nem poder, ler, se continuar assim.

A porta fechou.

Zeca ficou só, olhando a cidade lá embaixo — um país que garimpava princípios nos estertores, mas obedecia a donos; que fingia ter lei, vivendo de favores; que clamava por paz, mas era governado pelo medo.

E murmurou, quase em prece:

— Bonasera tinha razão em tremer.

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