“Religião e governo são gêmeos: nascem pra matar a fé e o voto, seus pais; são formas litúrgicas de opinião pública.”
— D’O Livro das Indiferenças
Um deputado propôs separar o Brasil. Mas separar o quê? O Brasil já nasceu dividido — não por geografia nem por cultura, mas pelo estado. Como escreveu Machado de Assis, em 1861, na revista O Espelho:“O Brasil tem duas partes: uma oficial e outra real. O Brasil oficial é caricato e burlesco. O Brasil real é sério e está nas páginas dos livros.”
Esse é o verdadeiro amálgama nacional: um Estado que vive de explorar, e um povo obrigado a sustentar quem o oprime. A mesma liga que cria estados e municípios deficitários (que é a causa da insatisfação do parlamentar), também cria rentistas da dívida pública, financia empresas com empréstimos públicos, estabelece subsídios e mantém burocracias sem fim. Tudo se sustenta na comunhão forçada do privilégio.
Eis um exemplo bem atual: o TST decidiu construir salas VIP exclusivas para seus ministros nos aeroportos do país. Um oásis de couro e ar-condicionado, pago com dinheiro público, para livrá-los do contato com “pessoas inconvenientes”. Enquanto o país real enfrenta filas, atrasos e revistas, o país oficial transita em tapete vermelho, separando-se pelo mesmo abismo da parábola cristã do rico opulento e do pobre Lázaro.
Ora, esse divórcio entre país oficial e país real não é de hoje. No país da desconfiança no cidadão, tudo é certidão, tudo é burocracia, tudo é oficial. A esse peso se somaram artes, academia e imprensa, que em vez de vigiar o poder muitas vezes se alinham a ele. Em nenhuma democracia madura a arte, a academia e a imprensa existem para servir governo. Afinal, dizia Millôr: “Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos & molhados.”
Esse servilismo, que mistura deferência e blindagem, tem história longa. Goethe e Beethoven a encenaram em Viena: diante do imperador, Goethe quis saudá-lo; Beethoven o conteve: “Imperadores são muitos, Beethoven só há um.” Entre nós, Bau Calça Velha dizia o mesmo de conhecidos que não enxergavam os amigos na presença de autoridades. É essa bajulação que cimenta o país oficial.
Olhando para a História, o quadro se repete. E quando esse poder se organiza, o resultado é sempre o mesmo: como os pretorianos de Roma, que vendiam o trono até serem destruídos, aqui os partidos e instituições fazem o mesmo: transformam até a fé em repartição. Nem milagre acontece sem certidão. O Estado não confia no cidadão que o criou: é uma catarse. Prevalece um Estado democrático de dinheiro. Lembremos: Dídio Juliano pensou ter vencido o probo Pertinax até perder a vida, em poucos meses.
No entanto, ainda há quem proponha caminhos diferentes. Há uma proposta muito bem organizada pregando que o povo é o único poder e que o Estado, por suas instituições, exerce serviço, não por autoridade, mas por necessidade popular.
Enquanto isso, na vida comum… numa favela ou na rua, uma criança faminta pergunta à mãe: “Será que no céu tem comida?” É a voz da fome, abafada pelos ladrões do INSS roubando os mais vulneráveis em número alarmante, por quase 20 anos, sob sigilos e proteção do Estado. Um pedido de aposentadoria ou a revisão de um benefício pode levar anos de espera, carimbos e humilhações; mas os descontos ilegais, esses eram feitos em segundos, à distância, por sistemas remotos. O país oficial cobra rápido, mas devolve devagar — quando devolve a devida prestação tributária.
E como se não bastasse, o contraste se agrava. O DNA de artistas, jornalistas e altos cargos públicos é fantástico: a humanidade não teve a mesma sorte com Einstein, Beethoven, Churchill, Alexandre Magno.
Da mesma forma, no campo do trabalho… há até uma brincadeira entre auditores sobre os chamados “direitos trabalhistas”: se fossem entregues diretamente ao trabalhador, este ganharia várias vezes mais. Mas, no caminho, o “custo do trabalho” pesa sobre o empresário e, por isso, o salário não sobe. A mágica é simples: o trabalhador não recebe, o patrão não pode pagar, mas o Estado arrecada. E, mesmo assim, alguns malandros especiais pegam esses recursos a juros abaixo do que o próprio governo paga em suas dívidas. Há quem diga que eles chegam a emprestar ao próprio governo. Dá pra rir — e dá pra chorar.
É nesse terreno que floresce o velho vício. Há, nesse universo oficial cada vez mais distante do povo, um fetiche pela corrupção, como se fosse uma forma sofisticada de malandragem. As notícias que revelam corruptos já são quase curriculares: o corrupto entra mais facilmente nas instituições do Estado e é sempre beneficiário dos seus favores.
Não por acaso, estudiosos já buscaram entender essa raiz. Não é de hoje que se tenta explicar por que a América do Norte seguiu uma trilha e a América Latina, outra. Viana Moog já lembrava, em Bandeirantes e Pioneiros, que o pioneiro norte-americano fincava raízes, construía comunidade, igreja e escola; o nosso bandeirante apenas passava, deixando atrás de si o rastro da aventura extrativa. Gilberto Freyre nos mostrou a sombra da Casa-Grande. Raimundo Faoro decifrou o estamento burocrático. E agora Acemoglu & Robinson apenas traduzem, em ciência econômica, o que já intuíamos: nossas instituições nasceram extrativas.
Diante disso, fica a ironia. Para um país que teve Nabuco, Bomfim, Freyre, Cascudo, Oliveira Viana, Moog, Prado Jr., Anísio, Carneiro, Faoro, Furtado, Darcy, Oswaldo Lamartine, Caldeira…, terminar divorciado por excesso hermenêutico, “é uma brasa, mora!?”
Talvez a origem esteja lá atrás. Vai que foi a caravela, né? Cinquenta dias dentro de uma nau rumo ao desconhecido é quase um BBB 00 — só que com eliminação definitiva em caso de dúvida. E os nossos, ao contrário dos puritanos, não criaram pactos comunitários; criaram relações heterodoxas. Daí nasceram corporações, coronéis, corruptos e Estado.
E assim chegamos ao presente. Termina que temos, no mundo oficial, uma monarquia sem nobreza num arremedo de república, onde os deslumbrados oficiais debocham do povo. O que começou como aventura exploratória, enveredou pelo escravismo e pelo coronelismo feudal, e desembocou nesse deslumbre. Todo o exercício do poder, no Brasil, é deslumbre. Melhor exemplo é o estrelato de quem não pode abrir uma geladeira no escuro sem imaginar que é uma câmera de TV — e sai deitando conversas alheias à vida comum e à função. Até o socialismo, para assumir o poder, precisou vestir-se dessa riqueza, dessa vaidade e do deboche. Não à toa se repete: o socialismo não dará certo no Brasil, porque nunca deu.
Como dizia, no modo Churchill para Lady Astor, lá na nossa Jatobá, o Môco respondendo à esposa que planejava envenená-lo: “Envenenado eu já vivo.” O Brasil também. Inventem outra coisa, porque dividido ele já vive — mas entre os espertos (os corruptos oficiais) e o povo; não é coisa para a rosa-dos-ventos e os seus pontos cardeais.
Até que a morte — ou a vida reinventada — os enlace.
PS: Um Promotor aposentado do Ministério Público de São Paulo pediu a suspensão de recompensas milionárias que considerava indevidas receber. Rejeitou regalias que julgava não merecer. É exceção tão rara que virou notícia. No país oficial, honestidade é extravagância exibicionista.