No dia 31 de março, data em que se rememora o golpe militar de 1964, a música Cálice, de Chico Buarque e Gilberto Gil, ressoa como um grito sufocado — ou, como a própria letra sugere, um grito que tentaram calar.
Composta em plena ditadura, Cálice é mais que uma canção: é uma denúncia codificada, um manifesto poético contra a repressão. A repetição do verso “Pai, afasta de mim esse cálice” opera como um duplo sentido. De um lado, evoca o sofrimento de Cristo no Horto das Oliveiras; de outro, a palavra “cálice”, homônima de “cale-se”, exprime a censura imposta aos artistas e intelectuais. O grito abafado, engasgado, se torna símbolo de uma geração silenciada.

Chico e Gil driblam a censura com lirismo e engenho. Cada verso carrega o peso de uma angústia coletiva: “Como beber dessa bebida amarga / Tragar a dor, engolir a labuta”. A violência, a desigualdade social e a opressão do regime militar estão ali, disfarçadas em metáforas de um país obrigado a beber o fel da submissão.
Lançada oficialmente apenas anos depois de sua composição, Cálice foi censurada à época, como tantas vozes e vidas foram caladas. Ouvi-la hoje, especialmente nesta data, é um ato de memória e resistência. É lembrar que a música brasileira foi trincheira e altar, onde muitos, mesmo sob risco, recusaram o silêncio.
Rejeitar o cálice imposto — ou o “cale-se” desejado pelos algozes da liberdade — é afirmar o valor da democracia, da liberdade de expressão, e da arte como testemunho da verdade.