“Perdeu, Mané.”
— Luís Roberto Barroso, Ministro do Supremo Tribunal Federal
Ao modo de Gilberto Freyre, há quem divida os brasileiros por Redes e Tipóias: uns do litoral, outros do sertão. Os primeiros, coletores — inclusive de tributos; os segundos, resistentes às intempéries, de sangue quente.
Atualizando a topografia, prefiro separá-los por Camarotes e Passarelas, ou — se quisermos ser mais futebolísticos — entre Arquibaldos e Geraldinos, como bem apontaram Nelson Rodrigues e, com ainda mais crueza popular, Washington Rodrigues, o Apolinho.
Mas hoje, o Brasil se revela numa dicotomia ainda mais brutal e banal: Malandros e Manés.
O Estado é o Malandro. O povo, o Mané.
E quando um ministro da mais alta corte diz isso, em público e com deboche — “Perdeu, Mané” — o véu da institucionalidade cai. Fica a risada. E a ferida.
As análises estrangeiras, curiosas e insistentes, já encontraram múltiplos brasis onde os próprios brasileiros veem um só. O próprio Freyre, que nos deu a trilogia seminal — Casa-grande & Senzala, Sobrados e Mucambos, Ordem e Progresso — ficou devendo um quarto volume, aquele que tratasse do Brasil urbano do século XX. Até dizem que teria começado um manuscrito perdido…
Longe da capital, mas ainda com Brasília dentro de mim, às vezes me lembro do seu cemitério principal — aquele do Plano Piloto, com suas espirais tumulares, enfileiradas como maquetes do destino, projetadas até a eternidade. Em contraste, vejo as catacumbas de Jatobá, terra batida, cruz de madeira e saudade seca.
Em Brasília, como em Arlington, na América, apenas uma lápide sóbria identifica o pó de um corpo que se reintegra à terra que o pariu.
Foi numa dessas comparações, feitas à sombra do tempo, que me ocorreu o tal “livro perdido” de Gilberto Freyre: Jazigos e Covas Rasas — título imaginário, mas necessário, sobre o Brasil do século XX. Uma espécie de continuação tardia:
1. Casa-grande & Senzala (Bahia e Pernambuco, séculos XVI e XVII);
2. Sobrados e Mucambos (Minas e São Paulo, séculos XVIII e XIX);
3. Ordem e Progresso (Rio de Janeiro, século XIX e XX);
4. Jazigos e Covas Rasas (o Brasil das promessas enterradas);
5. Camarotes e Avenidas (a era do espetáculo, séculos XX e XXI).
Vivemos hoje um país de versões, onde o espetáculo precede a verdade. A narrativa baldeia a honestidade, troca o juiz pelo ‘influencer’ e transforma a procura por culpados em solução mágica — enquanto a estrutura apodrece.
O último escândalo — 90 bilhões de reais desviados diretamente de aposentados — traz nomes, contas bancárias, CPFs, CGCs, chancelas públicas. Mas ninguém foi preso, nem obrigado à devolução.
Talvez o erário — dinheiro do povo roubado — responda pelo roubo.
Porque, no Brasil, às vezes, se o crime é de corrupção, quem paga o crime é a vítima.
Também, no Brasil, os agentes públicos têm mais direitos individuais que os cidadãos têm garantias públicas.
E toda vez que a Justiça se aproxima do berço do poder, o Estado adoece — e o processo morre por infecção institucional.
Entre essas ideias, veio-me à lembrança uma lenda sutil da Convenção Constitucional americana, que talvez explique melhor a diferença entre as instituições deles e as nossas:
Durante uma das sessões da constituinte de 1787, que Washington só aceitou presidir após exigir o sigilo absoluto nos debates, até a finalização de tudo, um delegado encontrou um papel no chão. Antes de devolvê-lo, fez questão de declarar que não era seu. George Washington exigiu que o verdadeiro responsável viesse à Mesa para reavê-lo. O homem, envergonhado, não foi. Mais tarde, confessou o descuido e prometeu mais cuidado.
O papel ficou. Tornou-se relíquia. Está, dizem, entre os objetos preservados no Museu do Congresso. Não pelo conteúdo, mas pela simbologia: ali, até um papel esquecido era levado a sério, em nome do pacto fundante da nação.
Somente depois de concluída a redação final, o texto da Constituição foi submetido aos estados. Aí sim, o grande debate público começou, gerando os Papéis Federalistas — escritos por Hamilton, Madison e Jay — uma joia do constitucionalismo mundial.
A diferença entre os países, afinal, não está no povo que os forma, mas nas instituições que os moldam. E as instituições — como bem sabem os bons antropólogos — são a forma mais sólida da cultura. Quando nascem do povo, são raízes. Quando nascem de cima, são ornamentos.
O povo brasileiro — é preciso dizer — tem as mais belas instituições populares do mundo. Das festas aos mutirões, dos saberes orais às gírias que reinventam o idioma, nunca temeu a interação cultural, nem rejeitou o outro por sua diferença.
Foi o povo que fez do lamento negro o Chorinho, que depois virou Samba e depois virou Bossa. O mesmo povo que deu ao batuque africano o passo do Maracatu, deu ao Maracatu a alma do carnaval.
A fé virou sincretismo: o altar de Cristo abraçou o tambor da Umbanda.
A pele morena misturou tudo — como quem mistura feijão com tudo dentro e inventa a feijoada.
Até a sorte virou povo: criou o Jogo do Bicho, mais confiável e, embora criminalizado, mais querido que as loterias oficiais.
E se um dia consentirem, por escolha popular, o que beber, o povo dirá: prefiro guaraná – ou a Pinga com limão e pitomba, ou um bom açaí, batido à moda da esquina.
Na feira popular, há cultura, trocas, fé, sabedoria e alegria. Mas, oficialmente, só há tributos.
Nossas elites, não. Essas se fingem de Paris, Nova Iorque e Londres, mas não descem das coberturas dos Jardins, Leblon. Copacabana e Ipanema.
E é esse o drama: o povo criou tudo o que presta. A estrutura oficial, tudo o que nos oprime – e rouba.
No Brasil, as instituições oficiais não surgiram do povo, mas de si mesmas. Foram moldadas pelo abrigo, pela espera, pela exploração. O protótipo é a chegada dos colonizadores: uma rede para descansar, uma palhoça para se abrigar e a esperança de que o ouro escorra fácil. Os nativos fizeram o papel inicial. Depois, os negros.
Do negro, tomaram a liberdade. Do nativo, a terra. E precisaram, por isso, mais de agentes públicos do que de trabalhadores.
Na América, o nativo foi mais resistente. Forçou o colono a construir sua própria casa, plantar seu próprio sustento, buscar o ouro com as próprias mãos. As instituições, por lá, nasceram do esforço. Por aqui, da intermediação.
E o que dizer da Igreja?
Sou católico por batismo, vocação e poesia. Mas depois de saber que três cardeais brasileiros, dos sete convocados à votação, foram flagrados com relógios que poderiam gravar — e talvez transmitir — as sessões secretas do conclave papal, eu decidi:
só volto à missa quando os quatro honestos disserem que não foram eles. E nem admito o direito de desculpas, senão o dever de respostas.
Nem precisam dizer quem foi. Basta que se diga quem não foi.
Afinal, no jogo popular de palavras reutilizadas, o último grau da malandragem é ser cardeal.
Como vigário virou vigarista, depois do conto da ingenuidade, o cardeal virou o malandro de batina, aquele que sorri com solenidade enquanto leva o ouro.
É o malandro que aprendeu latim. É o Mané que perdeu — com bênção.
Senão… são todos cardeais.
Ó tempos! Ó relógios! Ó costumes!
12/05/2025