O Brasil é o trânsito: às vésperas de um infarto viário.
Lancei um livro. Melhor dizendo: uma peça. Melhor ainda: um episódio — que virou memória, que virou metáfora, que virou teatro.
A peça se chama O Pino. Tem subtítulos: Barroada. Batida de Pino. É curta. Leitura de uma sentada. Vai fazer rir logo no início. Vai fazer rir logo no início. No final talvez pareça um pouco pedante – e, ainda assim, vai empolgar. Porque o Brasil está ali: inteiro, nu, debochado, encenado.
O curioso é que tudo começou de verdade. Eu estava em João Pessoa, estudante, morando em uma república, e vi a cena acontecer. Uma colisão simples, ali na esquina da Rua Peregrino de Carvalho com a Duque de Caxias (heróis de panteões opostos da história brasileira). Um táxi amassado, um carro de luxo encostando como se nada fosse. O motorista desceu furioso. O senhor do carro desceu como rei: cercado por guardas, cercado por deferência e, logo, claro, pelo povo. Gente que apareceu do chão – todos sabiam tudo: da batida, da peça, da justiça, da vantagem. E ali, bem ali, se revelou o Brasil que a gente vive todos os dias: a desigualdade cínica, cordial, silenciosamente gritante. E a defesa, à míngua de justiça, buscando a malandragem.
Essa cena nunca me deixou. Muitas vezes, lendo autores como Raymundo Faoro, Oliveira Viana, Florestan Fernandes ou Roberto DaMatta, eu me via de volta àquela esquina, ouvindo os pitacos, a humilhação, a esperteza e o pânico diante do poder.
Ali perto estava a Loja Maçônica Branca Dias, que ficava em frente à casa onde eu morava, com os dois leões imponentes na porta e a frase de esfinge: ‘Decifra-me ou te devoro.’ Uma mensagem tão brasileira quanto a batida.
Por ali também andava Giovani Montenegro, grande observador da cidade, o inesquecível Bau Calça Velha, que via tudo com olhos afiados e humor cortante. A velha João Pessoa está presente, com sua gente, seus becos e sua ironia – e o Ponto de Cem Réis, onde vivi e aprendi que o Brasil cabe numa esquina e escapa por uma buzinada.
Há mais sociologia no trânsito brasileiro do que em muitos centros de pesquisa. O trânsito é o espelho do país: regras para alguns, desvios para outros, coletivos abarrotados dando preferência aos vírus do transporte individual, e um motor sempre à beira de fundir.
Aqui em casa, até hoje, quando a situação fica confusa, alguém solta:
‘Quanto custa tudo isso?’
Ou quando há um conflito no trânsito, alguém vem com o preconceito estrutural, que alcança a todos inadvertidamente, contra mulheres, idosos e jovens.
É a frase da batida. Daquele momento exato em que o pino – da direção e da estrutura – range.
Agora escrevi. Publiquei. Estou tentando encontrar um grupo de teatro, um diretor – enfim, alguém que tope montar a peça para encená-la.
Muito obrigado pela leitura e pela atenção.
