sexta-feira, 5 de dezembro de 2025
No começo…*
31/07/2025

“A religião começou no silêncio.
Os primeiros deuses nasceram do temor que não sabia ser nomeado.”
— Will Durant, em A Idade da Fé

O cangaço não se permite à maturidade: sucumbe aos poucos anos que a inércia empurra da juventude. Menos por deficiência energética ou de mobilidade, e mais — mesmo — por uma questão de inadequação semântica. Por ser um estágio de herói, a palavra se vincula à imagem, não se podendo distinguir significante e significado. Quando escapa da morte até os 30, o cangaceiro passa a ser uma metáfora da própria vida — uma ficção em memória.

Na Serra do Horebe morou, durante muito tempo, um Velho, aos meus olhos, cuja esposa era um arquivo à vista. O casal teve filhos, aos quais não concedeu avós, tios e primos. Tinham chegado à serra, possivelmente, vindo com a lua ou acompanhando o roteiro do sol. Com arrancho para descanso, acabaram fazendo morada. Daí, a família. Descanso e vida parecem dividir o escapar.

O medo voltara a mulher à pedra do silêncio labial, que o vermelho do nariz refletia do olho. Olhos só se leem com mergulhos. O homem estava no medo da mulher e na disposição ao trabalho para ficar. Eram tão certos que pareciam esgotados de falar.

Assim permaneceram por cinquenta anos, até que ele morreu. Entender-se por conversa pouca foi uma das heranças para os dois únicos filhos deles. Os filhos já se pareciam com eles, à falta de outras reverências familiares — inclusive no silêncio.

As carpideiras quebraram a harmonia da casa com as orações no velório, até o despertar da filha de dezoito anos, respondendo às ave-marias puxadas no rosário. O filho primogênito, nesse tempo, contava as mesmas estrelas. Como não se volta do cemitério com a mesma carga genética, o filho, que trouxe a mãe, quebrou-lhe em casa o silêncio, ainda quando o pouco da noite aparecia, e com uma pergunta resolveu a vida:

— E agora? Como vai ser sem ele?

A mãe respondeu ágil, com o mesmo olhar:

— Como sempre foi!

Com o baixar da cabeça do filho, ela continuou:

— Eu conheci seu pai pelo braço, sem poder, nos olhos, separar dos demais. Ele me trouxe o corpo a cavalo e a alma “de a pés”. Ela acabou de chegar nos seus braços. Eu posso até lembrar de meu pai e de meus irmãos que ainda vivem. Sei de minha mãe. O que eu não sei é dele, porque nunca soube, nem quis saber, nem perguntei. Eu só ouvi, desde o começo, que a fala é arte da alma, e que o silêncio ajuda o corpo a viver. Não tive nem curiosidade de saber mais. Fiquei esperando essa reunião que acaba de acontecer.

Até ele chegar, eu era filha, irmã, madrinha, afilhada, sobrinha, neta, amiga e vizinha. Depois dele, e sem alma, eu era isso. Pode me chamar de mãe que eu escuto, mas não queira saber de mim, que eu vou começar a viver agora: eu me encarnei de alma.

No sítio, a vizinhança é uma sala a mais da casa. As vozes de paredes e mato começaram a ser ouvidas. Soube-se, então, que aquele homem, fugindo da polícia, trouxera uma mulher de uma roça no caminho, com a qual teve os filhos — e o silêncio — por todo aquele tempo. Era do bando de Lampião. Ela não se sabe de onde viera. Ambos começaram a vida como deve ter sido na Terra, no Gênesis. Os filhos se prometeram nomes, filhos, netos, sobrinhos e primos. Ela ainda está viva.

*De Jatobá – Memórias de Um Cascadura

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