‘Ver jornalistas defendendo censura é o absurdo a que nenhuma maldição teria ousado tanto.’
‘São carcereiros que nasceram para ser sentinelas da liberdade.’
Entre todas as expressões humanas, o riso talvez seja a mais mal compreendida – e a mais perigosa. Não porque seja frívolo, mas porque é radical. O riso verdadeiro não é o da distração, mas o da consciência. Não é o do palhaço, mas o do filósofo. E por isso, desde sempre, o poder desconfia dele.
A recente condenação de um humorista brasileiro por piadas políticas, somada à extensão de sanções judiciais a familiares de uma deputada, não pode ser tratada como episódio isolado. É um sintoma da transformação perversa do Direito: a pena deixa de ser individual e se torna hereditária, afetiva, atmosférica. Como nos tempos da Inquisição, pune-se o nome, o laço, a suspeita. E como se não bastasse, ergue-se um novo altar: o da moral pública vigilante, onde o riso é heresia e o parentesco é prova.
O princípio da individuação da pena – desde o Deuteronômio, passando por Beccaria e pelas constituições modernas – é violado em nome de uma suposta ‘segurança democrática’, que não passa de nova teologia estatal. O moralismo politicamente correto gerou essa ideologia do medo: tudo deve ser limpo, puro, seguro. O humor fere. A proximidade contamina. A palavra arrisca. E, por isso, devem ser domesticados.
John Milton já advertia, em 1644, que destruir ideias antes que sejam conhecidas é matar a própria razão. Em sua Areopagitica, defendia que a verdade não teme o confronto, que a liberdade exige o risco de se dizer o que não convém. E Millôr Fernandes, sem latim, disse o mesmo: ‘Jornalismo é oposição. O resto é armazém de secos e molhados.’
Mandeville, com sarcasmo iluminista, lembrava que os vícios privados sustentam os benefícios públicos. Shaw, com ferocidade irônica, dizia que todo progresso depende dos insensatos. E talvez seja isso que nos falte: insensatez. Coragem de rir, de pensar fora da forma, de quebrar consensos domesticados por hashtags e sentenças. Há um adestramento notável na formação de uma ‘juventude governista’: movimento típico das tiranias mais grosseiras da história. Não há, no humano, algo mais insensato do que a juventude. Não por menos que, de todos os animais, é o que mais se demora nessa fase da vida.
Em O Nome da Rosa, Umberto Eco imagina que o segundo livro da Poética, de Aristóteles – sobre a comédia e o riso – foi censurado, escondido e envenenado por Jorge de Burgos. ‘O riso mata o medo, e sem medo não há fé.’ A frase, dita pelo velho monge cego, resume o temor ancestral do poder: que a gargalhada dissolva a reverência.
Hipócrates, por sua vez, ao examinar Demócrito – tido por louco por rir de tudo – conclui que seu riso não era loucura, mas sanidade em excesso. Demócrito via a doença social: os homens viviam de doxa (opinião), e ele via a aletheia (verdade). Seu riso era diagnóstico. E por isso, temido.
Henri Bergson ofereceria ainda outra chave: o riso como vigilância social, como correção dos desvios. Um riso que reforça a norma. Mas o riso de Demócrito, o riso que Jorge teme, o riso que Eco exuma, não corrige – liberta. É insuportável porque é livre. E o que é livre não pode ser licenciado.
Talvez por isso o riso seja, desde sempre, tão ambíguo. Ele pode nascer da burrice ou da sabedoria, da crueldade ou da compaixão. Mas quando é autêntico, ele desnuda. E tudo que desnuda o poder é tomado por crime.
Não se trata de defender uma piada infeliz. Trata-se de impedir que se criminalize o cômico, o laço, a crítica. Trata-se de lembrar que o riso é uma forma de resistência. E que toda sociedade que pune o riso prepara a cela onde a verdade será trancada.
Se há algo que ainda pode salvar este país – e talvez o mundo – é o retorno da insensatez lúcida. A que desafia o medo com palavras. A que enfrenta o moralismo com humor. A que reconhece que a civilização começa quando alguém tem coragem de rir na praça. E sobrevive quando outro tem coragem de rir no tribunal.
- Frei Jorge, lamento informar, mas Jesus riu!