Quando um corpo morre, à alma se deixam duas possibilidades: a de não saber e a de saber da morte. As almas que não têm consciência da morte são as eleitas ao paraíso, porque viverão na eternidade espiritual o que viveram no corpo material. Aos réprobos, a consciência da morte é um dos efeitos da condenação. Esses viverão os tormentos dos seus pecados, mesmo que sejam apenas as cenas de suas vítimas.
Ninguém, entretanto, ultrapassa a morte nos sonhos.
O debate acerca dessa consciência pós-morte era flagrante entre os penitentes, desde antes do ‘Padin Ciço’. Com o padre, o assunto assomou o presbitério das homilias e o ensinamento pastoral.
Das pastorais da igreja, a mais conhecida no assunto ficou sendo a da Ordem dos Penitentes, que ergueu uma capela à Nossa Senhora das Candeias, para que as almas fossem iluminadas pela misericórdia de Deus ao esquecimento da morte, em favor da vida.
A Procissão dos Penitentes passava, ‘Meu Padin’ ainda vivo, toda 1ª sexta de maio, cortando a Rua Nossa Senhora das Candeias, até à capela consagrada ao nome, indo e voltando, com tempo de três rosários.
Os devotos que seguiam harmonizavam as ‘ave-marias’ e ‘pai-nossos’ do Rosário com alguns benditos.
A procissão saía da capela, por volta das 5 horas da tarde, parando para o Ângelus, às 6, no final da rua, e voltando para uma missa celebrada pelo ‘Meu Padin’.
Assim se foi por mais de 30 anos.
Diz Esmeraldo Braga que o nascimento de Orlando Tejo rasgou o véu que separava na poesia o fantástico do real. Projetando-se em Zé Limeira, Orlando fundiu o ‘Zé’ da Paraíba à leitura do seu nome de família: Meira, deixando sua biografia às versões das lendas.
Uma dessas lendas, cujas versões são guardadas publicamente em segredos irrevelados, deu-se em um quarto de hotel, na dita rua das Candeias, começo dos anos 70, quando a Procissão dos Penitentes voltou à liturgia do ordinário católico.
Patativa do Assaré recebera, em casa, a visita de Orlando Tejo e Esmeraldo Braga, que saíram em cruzada para resgatar a cidade de Juazeiro à sua fecundidade. Patativa devolveu a gentileza indo com eles até o hotel, onde estavam hospedados.
A devolução da visita deu-se na aurora, quando o sol está nascendo, porque estrelas se entendem ao nascer.
Enquanto Orlando e Patativa ensaiavam os versos do que viria a ser a última capa da primorosa edição do ‘Poeta do Absurdo’, pela gráfica do Senado Federal, Esmeraldo bebia bicadas de uma brejeira que se entregava ao seu sabor.
Almoçaram pelo meio-dia. É que as estrelas se encontram no zênite, quando não fazem sombras, ou as põe sob os pés.
Foram a sesta.
A roda do sol descambava aos cafus, quando Esmeraldo acordou espantado com um barulho de pancadas nas paredes do quarto.
Lá estavam Patativa do Assaré e Orlando Meira Tejo, cada um com um livro na mão: Patativa, com ‘Zé Limeira, o poeta do absurdo’; e, Orlando, com ‘Cante lá, que eu canto cá’, matando umas muriçocas que queriam interferir na conversa dos dois.
Meio atônito, Esmeraldo se agarrou com o seu ‘Danação em Terra Quente’ e se juntou aos outros dois, em constelação, mas, ficou ouvindo uns benditos e umas jaculatórias, como se viessem de algum fundo do tempo; correu pra janela e deu de vista com a procissão dos penitentes.
Estavam todos com candeias e velas nas mãos entoando suas preces oracionais, num quadro somente consentido a Dante avec Virgílio, na Comédia Divina.
Desassombrados, eles desceram à entrada do hotel para assistir de perto e acompanhar o rito, até à calçada da igreja, com Patativa narrando a história de cada detalhe, em versos – que foram aos livros eternos do esquecimento.
Esmeraldo guardou a cena na cafiote que conduzia, e contou-me para ser contada – em conto que conto.
Era a 1ª sexta de maio de uns anos dos setentas, que passaram no século passado.