Errou a cesta da janela atirando a bolinha que fez com os cartões da Mega da Virada. Foi a sorte.
Passados aqueles dias, desde o Dia de Reis, aos quais se dedicara ‘sabaticamente’ (a expressão é adverbial, com intensidade semanal, mas vale pela folga para o sucesso) à sua última prova de que com alguns jogos (para ele: vinte) era possível acertar a loteria, manteve-se com a mesma roupa com que ‘trabalhara’ os números e as matrizes ao longo do ano.
2016 não foi de brincadeira. A última ‘coleta de dados’ foram o prefixo do avião russo mergulhado no Mar Negro e a idade de George Michael.
Para ele, matematicamente, bastava eliminar algumas possibilidades progressivas, números repetidos e os seus contrários respectivos. Sobravam tão poucos que a possibilidade caía em seu favor. Por exemplo: números sequenciais, em progressão aritmética de razão 1…até n ou ímpares ou pares. Enfim, qualquer sequência. Essa linha impeditiva, dizia ele, respeitava a teoria de Nash assombrada pela superstição: Nunca ofereça a sorte, especialmente às linhas de parentesco. A sorte é tão individual e única, com destino certo, mesmo sendo contingente, que, não fosse pecado, ele diria: assemelha-se a Deus.
Então! Saindo da teoria dos conjuntos, nesses grupos que se formavam por eliminação matricial, e desembocando nas análises combinatórias, foi-lhe possível ficar com tão poucos números que ainda se deu a esse luxo de colher alguns no universo aleatório. Até a razão histórica das loterias ele usou. Alguma coisa como os números caem sempre de par em par em dezenas distintas.
Ao fim e ao cabo, escolheu os valores mais altos para as apostas. Isso implicou na venda do carro da família. Convenceu a esposa, em nome da qual se guardava o único bem ainda estável, pedindo para que ela jogasse dados ou oferece números. Ele sempre acertava e ria tanto, no quarto número conferido positivamente, que parava o teste. Ela tanto acreditou, depois de relutantes oposições iniciais, que já chegava no salão onde trabalhava, já na segunda metade de dezembro, como se fosse a ‘rica magistrada’ de quem era fiel depositária da beleza. O ar de riqueza impregnara a plasticidade do casal de tal maneira que os meninos (dois garotos adolescentes) se metiam a escolher os grupos da formação do futebol com uma empáfia de como se fossem donos da bola de um vizinho, para o estupor desse.
Nesse ambiente, a família tirou um ano de sucesso. Era preciso chegar no início do próximo com um ar soberano para não haver ‘choque térmico’ que provocasse a desconfiança desses vizinhos. Esses rasgos exibicionistas eram considerados meio patológicos, senão escatológicos, por quem os conhecia de antes. E a ‘venda’ do carro parecia coisa de quem exagerava no atraso das prestações. Os conhecidos continuavam com a máxima nacional: Ninguém enrica trabalhando e, tanto pior, dentro de casa. O único mistério que enrica brasileiro é o mais evidente: a corrupção. Como ninguém da família tinha vínculo com o serviço público, sequer com política, não havia segredos.
Esse ambiente estava na sala de casa, onde eles ficaram, diferente de quase todos os da rua (que foram à praça do bairro), para assistir o sorteio das dezenas sendo transmitido em todos os canais de TV e estações de radios e internet. Ele sentou-se na cadeira só com um pedaço de papel e uma caneta simples. Mas não era visto assim: Pela esposa era um Deus; pelos filhos: um gênio da matemática, que se enobrecera vendendo coleções de livros, almanaques, enciclopédias e assinatura de revistas. De tanto ser visto assim, minutos antes do grande começo lúdico, viu-se em um estado de autorrealização, de samadhi, só comparável ao desapego dos avatares.
E tudo ocorreu, como nos testes, num silêncio de eco retumbante: acertou até os quatro primeiros números – e nenhum a mais.
Com a tristeza de quem sente ao tato a linha do horizonte, baixou a cabeça, fez um bola com os volantes e a atirou pela janela, errando a cesta de lixo.
Aquele ar de riqueza dos últimos dias impediu a varrição da casa para o reveillon e, agora, somente poderia ocorrer depois da festa de Reis, conforme uma tradição familiar da dona da casa. E mesmo assim, varrição de ‘fora para dentro’.
O eterno retorno é uma decepção própria ou uma vingança do destino. Os meninos saíram ao futebol sem o ar de donos da bola; ele se vestiu de paletó e gravata, após algumas ligações confirmando prêmios aos compradores que lhe permitiram entrar em algumas casas para vender livros; e ela foi trazendo o destino da calçada para dentro de casa, como a vizinhança via desde seus avós, primeiros habitantes da residência.
No dia 7 de janeiro o lixo já estava preparado para ser jogado à coleta, quando o telefone dela tocou. Era ele. Falou que acabara de assistir na TV que o sorteio da Mega da Virada fora fraudado e que envolvia gente graúda do governo e da política. Haveria outro sorteio; que ela não jogasse o lixo fora, especialmente aquela bolinha de papéis de loteria que não passara para cesta pela janela sabática. Ela se agarrou com o lixo com uma paixão de quem se recupera de uma grave doença e ligou a TV. Todos os canais anunciavam uma corrida da população ao lixo do ano passado, procurando a sorte de um ano que insistia em não terminar.