- Por Irapuan Sobral Filho
Querendo entrar na história, papai contava a sua versão do conto da Mulher-Onça, que povoou as matas do Abrão até o Trocedor, acompanhando as margens do Riachão e do Rio das Cuncas, beirando os limites com a Paraíba.
Dizem que ela escondia uma beleza incomum no estilo selvagem, mas não parava, por pouco que fosse o tempo, os olhos muito verdes em outro olhar. Cheirava a mato, como o marmeleiro no inverno.
O hálito recendia as frutas de épocas.
O cabelo era grande, mas aparado com irregularidades nas pontas, como se fosse cortado a pedras.
Poucos a viram. E quem a viu fala dela como um vulto, que congelava à aparição se deixando notar e desaparecia em uma velocidade muito acima do galope de um cavalo disparado.
Ela desapareceu da região e das memórias.
Suas façanhas também estão desaparecendo, mas dizem dela na história da criança que permaneceu por cinco dias perdida no Abrão e voltou pra casa sã e salva, alegando que tinha sido alimentada por uma mulher, cujos traços são os dela.
Falam dela no caso do filho de Téofilo Leite, o mais famoso matador de onças do sul do Ceará. O rapaz havia saído pra caçar e voltou surdo-mudo, numa tristeza sem comparação, mas sem choro. Era de uma tristeza mórbida, como a de quem perdera o paraíso. Tanto era assim que, depois, decidiu por si assinar a sua sentença ao destino – e foi!
Papai me contou que numa viagem ao Riachão, ele levava o gramophone e teve que consertar algum problema no carro. Aproveitou para ouvir as músicas novas que sempre levava para as noites de conversas no alpendre da casa de Vovó. Enquanto executava o conserto, ouvia, de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, a Letra I, de onde se ouve o mais belo verso do cancioneiro brasileiro:
‘Meu zóio chorou tanta mágua
Que hoje sem água
Nem responde a dor.’
A música havia parado e ele continuava ouvindo-a cantada a capela de dentro da mata. No começo pensou que era um eco, mas desconfiou pela demora. Desassombrado, papai teve ainda tempo de terminar o conserto, guardar o toca-disco, entrar no carro e, quando se preparava para partir, viu um vulto que parava, cantava partes da canção e desaparecia dando grandes voltas circulares em torno do carro.
Boquinha da noite, aos cafuis, pensou que seria comum ter-se esse tipo de imagem; o som seria um repeteco memorial do que ouvira durante o tempo do conserto, repetido algumas vezes. Bem! O riso entra na história como ornamento ilusório.
O grande problema é que a música continuou sendo cantada até a cancela que abre o Riachão aos seus eleitos, já chegando na Casa de Sá Mariinha.
O que mais espantou papai, foi, na parada na casa de vovó, sendo recebido por Badia, e ela dizer:
– Eita! Que cheiro intenso de flor de laranjeira!
Ao olhar para trás, papai notou uma espécie de cesta de folhas e flores com algumas laranjas, daquelas cujo sabor ficou no Riachão – e nunca mais saiu.
Não tendo como explicar, sem esconder o espanto, ele disse:
– Eu parei para um pequeno conserto no carro, e alguém que passava me deixou essas laranjas. Não rejeitei para ser educado.
Badia não passou o recibo da aceitação da fácil e rápida resposta. Como já ouvira algumas histórias sobre a mulher, com esse tipo de presente, desde criança, ela sorriu seu riso mais encantado, chamando papai de Painho.
Depois que ouvi a história, eu pensei comigo:
– Era Badia!
Aquela mulher é a saudade, que se transforma em pessoa, quando a gente pensa que esquece.